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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

NARCISOS EM CATIVEIRO

"[...]
Quando eu te encarei
Frente a frente
Não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi
de mau gosto o mau gosto
É que Narciso acha feio
o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda
Não é mesmo velho
Nada do que não era antes
quando não somos mutantes
[...]"
Caetano Veloso 
 Breve história da vaidade
O narcisismo tem o seu nome derivado de Narciso e ambos derivam da palavra Grega narke, "entorpecido" de onde também vem a palavra narcótico. Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, visto que ele era emocionalmente entorpecido pelas solicitações daqueles que se apaixonavam pela sua beleza.
O percurso narcísico é  cronológicamente longo mas muito pobre em etapas. O orgulho, pior pecado mortal, em vigor durante a maior austeridade da moral católica, foi gradualmente sendo substituído pela auto-estima que coincide com o advento da psicologia barata dos livros de auto-ajuda. Quando a religião, a família, os amigos e os valores da sociedade tradicional se revelaram muito precários para promover o sempre intrincado bem-estar dos humanos, a auto-ajuda, vulgarização e banalização das conquistas da psicologia moderna, veio socorrer os infelizes. A auto-estima sinônimo de arrogância, falsa auto-suficiência, pretensão desmedida e desprezo absoluto pelo outro, por si só, já seria uma catástrofe para as relações humanas. 
Desgraçadamente, não ficamos por aí. A sagrada auto-estima cultuada como um credo, involui e pariu bilhões de narcisos. A prosaica auto-estima transformou-se e gerou uma espécie de animal gregário transgênico e entorpecido, o narciso.
No Facebook, no Instagram, no Google Plus e no Twitter, podemos apreciar com riqueza de detalhes, a movimentação emproada dos narcisos no seu habitat mais natural. As chamadas redes sociais são viveiros tecnológicos de narcisos empanturrados. 
Habitamos um planeta de narcisos. São bilhões de narcisos que vibram e se deslocam como girinos em poças d'água.
Como havemos de chamar doravante, as relações que os narcisos estabelecem uns com os outros por ato reflexo e condicionamento grupal? Com o assalto dos narcisos, os conceitos mudaram sobremaneira. O conceito da amizade é obsceno, na medida em que um único narciso pode ter milhares de amigos. O conceito de proximidade, sofreu uma facada mortal. O conceito da criação artística, arrasta-se pelos meandros desertos da esterilidade intelectual ou do mais profundo mau gosto. O conceito da solidariedade confunde-se com muitos outros de caráter pejorativo. Os conceitos da saciedade e da razoabilidade foram engolidos pelas práticas do exagero e do excesso. Os conceitos de amor e afeto estão sendo reformados e revistos, porque são sentimentos em extinção. (Não salvem apenas os micos e as baleias, salvem também os sentimentos nobres.) 
Vivemos o fim do futuro e quem tiver coragem para estancar esta indecente e desatada egolatria que quebre em definitivo e com convicção o seu próprio espelho.

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