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segunda-feira, 31 de julho de 2017

Ecos da savana

Não se consegue reverter facilmente um paradigma atávico. E o paradigma que tem milhões de anos é o seguinte:
- Quando você está em grupo, está bem. Quando está só, você está mal.
Até se alardeia a ideia segundo a qual a solidão é uma penitência e um castigo. As pessoas incorporaram essa percepção ao longo de milênios e ela está exarada no A.D.N. como uma mensagem indelével.
Está mais do que na hora de rever esse equívoco essencial.
Eu não estou mais nas savanas e Darwin é quase tão confiável quanto Adão no Jardim do Éden. O grupo não me protege mais como outrora, muito pelo contrário, o grupo me enfraquece e me maltrata. O grupo me subestima e me despreza  se eu não fizer exatamente o que ele determina. O grupo é despótico e deletério.
Quando eu estou só, posso estar muitíssimo bem e quando estou acompanhado posso estar preso  a uma terrível armadilha; a armadilha de que eu sou forçosamente social e gregário.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A mutação antropológica

Franco Berardi, em entrevista a Juan Íñigo Ibánez (Outras Palavras)
Neoliberalismo, assexualidade e desejo de morte. Filósofo italiano aponta: obsessão pelo sucesso individual e troca dos contatos corpóreos pelos digitais podem realizar distopia da humanidade insensível, para a qual já alertava Pasolini.
Uma das metáforas mais potentes – e de maior ressonância até nossos dias – no imaginário de Pier Paolo Pasolini é a de “mutação antropológica”. Trata-se de uma expressão que o cineasta, escritor e poeta italiano utilizava para ilustrar os efeitos psicossociais produzidos pela transição de uma economia de origem agrária e industrial para outra, de corte capitalista e transnacional.
Durante os anos 1970, Pasolini identificou, em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas, uma verdadeira transmutação nas sensibilidades de amplos setores da sociedade italiana, em consequência do “novo fascismo” imposto pela globalização. Acreditava que esse processo estava criando – fundamentalmente por meio do influxo semiótico da publicidade e da televisão – uma nova “espécie” de jovens burgueses, que chamou de “os sem futuro”: jovens com uma acentuada “tendência à infelicidade”, com pouca ou nenhuma raiz cultural ou territorial, e que estavam assimilando, sem muita distinção de classe, os valores, a estética e o estilo de vida promovidos pelos novos “tempos do consumo”.
Quarenta anos depois, outro inquieto intelectual de Bolonha – o filósofo e teórico dos meios de comunicação Franco “Bifo” Berardi – acha que o sombrio diagnóstico de Pasolini tornou-se profético, diante da situação de “precariedade existencial” e aumento de transtornos mentais que as mudanças neoliberais provocaram.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é hoje a segunda causa de morte entre jovens e crianças – a grande maioria do sexo masculino – entre 10 e 24 anos. Do mesmo modo, a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento suicida – será em 2020 a segunda forma de incapacidade mais recorrente no mundo.
Berardi acredita que esses dados – assim como a maioria dos atos violentos produzidos nos últimos anos, os assassinatos em massa ou os atentados suicidas radicais – estão estreitamente vinculados às condições de hipercompetição, subsalário e exclusão promovidos pelo ethos neoliberal. Sugere que ao analisar os efeitos que a economia de mercado tem em nossas vidas, devemos também incorporar um elemento novo e transcendente: o modo como os fluxos informativos acelerados a que estamos expostos por meio das “novas tecnologias” influem em nossa sensibilidade e processos cognitivos.
Esclarecimento: Berardi não é nenhum tecnófobo ou romântico dos tempos do capitalismo pré-industrial. Compreende – e utilizou a seu favor – os avanços que a tecnologia introduz em nossas vidas.
Desde o final dos anos 1960, liderou diversos projetos de comunicação alternativa, tais como a revista cultural A/traverso, a Rádio Alice (uma das primeiras emissoras livres da Europa), a TV Orfeu (a primeira televisão comunitária da Itália). Participou de programas educativos da Rádio e Televisão Italiana (RAI) ligados ao funcionamento e efeitos das novas tecnologias. Além disso, “Bifo” foi um observador atento de fenômenos contraculturais como o ciberpunk, ou as possibilidades futuras de governos tecnofascistas.
Sua carreira foi fortemente marcada pelo compromisso político. Foi membro ativo – desde a Universidade de Bolonha, onde graduou-se em Estética – da revolta de Maio de 68. No início dos anos 70, esteve vinculado ao movimento de esquerda extraparlamentar “Poder Operário”. Posteriormente – no começo dos 80, durante seu exílio na França – frequentou Michel Foucault e trabalhou junto com Félix Guattari no campo disciplinar então nascente da esquisoanálise. Berardi é autor de mais de vinte livros, entre os quais destacam-se El Alma del Trabajo: desde lá alienación a la autonomia (A alma do trabalho: da alienação à autonomia), Generación post-alfa. Patologías e imaginarios en el semiocapitalismo (Geração pós-alfa. Patologias e imaginários no semiocapitalismo), Héroes: asesinato de masa y suicidio (Heróis: assassinato de massa e suicídio) e Fenomenología del fin (Fenomenologia do fim).
Originalmente em "Insurgência"

sábado, 22 de julho de 2017

Pascal e as novas tecnologias

Primeiro, vamos entender o que é "Divertissement", "Divertimento" segundo Blaise Pascal. Divertir-se, hoje é distrair-se, espairecer, deleitar-se, desentediar-se, etc.
Antes do século XVII, a palavra conforme a sua etimologia latina, (divertere) significava "ação de desviar de" por exemplo desviar um bem de um inventário. Pascal constrói a partir da etimologia uma categoria moral. O "Divertimento" é uma prática de esquiva, típica da existência humana. Trata-se  de não pensar em nada que nos aflija e que nos desvie da realidade desagradável. Esta realidade desagradável não é um mal circunstancial, por exemplo um luto ou um fracasso sentimental ou profissional; é uma infelicidade constitutiva de nossa existência. Nossa condição é a de um ser fraco, mortal, exposto à doença, à solidão e ainda por cima privado do único ser capaz de solucionar todo este imbróglio:deus.
Considerando que os homens não podem curar a morte, a miséria e a ignorância, não pensar nesta situação é a solução da grande maioria.
Nada é mais insuportável ao homem que ficar em pleno estado  de repouso, sem paixões, sem atividades, sem divertimento. Em repouso, (en repos) ele sente o seu  nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua impotência e o seu vazio. 
É neste contexto, que as novas tecnologias se prestam a tornar a fuga muito mais possível e muito bem sucedida. Acho que as novas tecnologias não foram apenas criadas para facilitar relações, difundir informações e fomentar intercâmbios. A principal função das redes sociais, internet e etc, é promover de maneira muito eficaz a fuga de si próprio e  a não-reflexão. Aliás, nunca se viveu uma época tão alienante, superficial e anti-introspectiva.  

A Miséria do Divertimento

Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto menos divertido, como os Santos e Deus. - Sim; mas não sendo feliz pode animar-se pelo divertimento? - Não; porque vem doutro sítio e de fora; e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis.
(...) A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.
Blaise Pascal, in "Pensamentos"

quarta-feira, 19 de julho de 2017

A solidão não tem solução

-Um cachorrinho resolveria a sua solidão?
- Não
- Um gatinho seria a solução para a sua solidão?
- Não
- Uma família elimina a sua solidão?
- Não
- Um namoro acaba com a sua solidão?
- Também não
- Um trabalho atenua a sua solidão?
- Absolutamente, não
- Viajar para Paris acaba com a sua solidão?
- Non
A solidão é intrínseca e inexorável. A solidão não tem solução, a solidão é a solução.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

A insanidade segundo Nietzsche

Confirmação e denúncia

Existe uma nuvem de insanidade que cobre todo o planeta. Por vezes, é uma cobertura mista de insanidade e perplexidade. Há alguma coisa muita errada com a espécie humana e ninguém diz nada.
Se você confirmar a insanidade reinante, você é um cara legal e todo mundo diz que você é muito bem educado e todo mundo te adora. O preço da popularidade é módico: confirmar a frivolidade, a mediocridade e a loucura geral.
As pessoas se agarram às próprias máscaras, porque sem elas, não sobra quase nada. Em geral, as pessoas são as próprias máscaras. Desmascará-las é ofendê-las mortalmente; é confrontá-las com o nada e com o vazio. Por isso, é muito fácil fazer inimigos.
Se você repete como um credo as histórias puídas e mentirosas contadas ao longo de gerações, você é bacana. Se você confirma ainda que não concorde, por pura covardia, você até tem a impressão de ser amado pelo grupo. Acontece que o grupo não ama ninguém. Você está iludido e enganado.
Agora, se você denuncia a macacada geral, o teatro a céu aberto, o hospício consentido, a estupidez globalizada, o descalabro metafísico da condição humana, o demônio que mora nos seres humanos, as injustiças banalizadas e o circo institucional, você é do mal. São muito poucos os que te apoiam. Quase ninguém tem coragem de te seguir embora saibam no fundo dos seus íntimos  insondáveis e confusos que você vê, enxerga e se limita ao que realmente tem importância. Todo o resto é para enfrentar o tédio e passar o tempo.

sábado, 15 de julho de 2017

O fundamentalismo egoico

Eu sou do tempo dos egoístas onde até se consentia um certo egocentrismo como característica de personalidade.
Hoje, os egos extrapolaram todas as dimensões e se tornaram obsessão, histeria e fanatismo. Só se fala em amor próprio, autoestima e autoajuda. A egolatria chegou ao seu paroxismo.
Hoje, as pessoas estão doentes de si mesmas. Os descalabros que vemos à nossa volta são a consequência inequívoca de íntimos enfermos. Redefiniu-se o conceito de grupo e o que impera é uma geografia bizarra onde abundam ilhotas tolas. O arquipélago se masturba e não dialoga mais. Não há mais continentes. Contentamo-nos com algumas penínsulas heroicas e o resto é mar.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Amor de cão

PET LOVE
O amor humano que sempre foi um sentimento raríssimo, parece que está em franca extinção. O homem não é apenas capaz de extinguir as espécies animais e vegetais que povoam este belíssimo planeta, ele também é muito competente para destruir o que é bom e sublime. 
Nunca a indústria dos pets arrecadou tantos lucros. Fecham-se livrarias e abrem-se academias de musculação e pet shops. A descrença no ser humano, ainda que não afirmada - vivemos uma época do tácito em que nada se pode dizer, mas quem for minimamente perspicaz pode compreender o que se passa - é gritante e extremamente preocupante.
Nunca vi tanta gente passeando cachorro e nunca vi tanta gente falando português com cachorro. Acho que vou lançar um curso de português para cachorros e vou enriquecer.
Eu adoro cachorros. Amo toda a natureza não humana, com todos os seus animais ditos irracionais e com toda a sua vegetação desprezada , mas não concebo esta substituição estratégica de seres humanos por cachorros.
O inquestionável afeto dos cachorros está muito longe do que ambicionamos como humanos. "Não tem tu, vai tu mesmo".
A carência afetiva que nos caracteriza teve que manobrar para nos livrar da sensação insuportável de solidão e desamparo. E ainda bem que existem os cachorros para nos salvar um pouco do abandono e da desilusão.