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sábado, 19 de agosto de 2017

A grande guerra das vítimas

Depois que inventaram o neologismo verbal "vitimizar", parece que acabaram as vítimas. Ninguém é mais vítima. É feio ser vítima. É uma verdadeira desonra reconhecer-se vítima. É quase uma ofensa chamar alguém de vítima. Temos a falsa impressão de quem se diz vítima está fingindo, trapaceando ou exagerando. E não é nada disso.
Eu continuo a achar que há mais vítimas do que outra coisa neste planeta e eu sou uma delas. Somos vítimas da mentalidade vigente, do capitalismo selvagem, do comunismo delirante, dos códigos profundamente injustos, das injunções religiosas, dos preconceitos desenfreados, da hipocrisia geral, da insanidade dos governantes, da síndrome patronal, dos fundamentalismos de toda a sorte, da violência humana, da falta de reconhecimento, da chantagem emocional, da ganância da espécie, do feminismo xiita, do American way of life, do politicamente correto, da arrogância coletiva, da corrupção endêmica..... Não acabaria hoje esta lista.
Enquanto não nos considerarmos vítimas, nunca poderemos combater os nossos verdadeiros algozes. Se você "está se vitimizando" logo você não é vítima e se você não é vítima, nunca combaterá os verdadeiros verdugos.
O que eu mais vejo são vítimas brigando com outras vítimas por não se saberem vítimas e por não conseguirem localizar os verdadeiros culpados. Aliás, por conta da associação que é feita da "culpa" com a religião, ninguém é mais culpado. Preferem usar eufemismos do tipo "responsável."
É uma lástima ver as pobres vítimas combaterem outras vítimas. Não conseguem eliminar as vítimas e muito menos os facínoras. Se acabássemos com esses sofismas e nos uníssemos como vítimas que somos, as coisas mudariam muito.

sábado, 5 de agosto de 2017

Intrusos no paraíso

Amargo o deleite de não ser popular. Tenho o péssimo costume de só dizer  o que é essencial, metafísico e profundo. Não conseguiria ser frívolo por mais que me esforçasse.
A cada verdade objetiva que digo, é um seguidor a menos. Fico feliz em não ser seguido por gente que não fala a minha língua.
Ia escrever um longo texto em prosa poética sobre este planeta maravilhoso que adoro e sobre os intrusos nocivos que somos todos nós, e contra os quais tenho muitas reservas, mas não foi preciso, CIORAN já disse tudo. Obrigado Cioran. 

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Ecos da savana

Não se consegue reverter facilmente um paradigma atávico. E o paradigma que tem milhões de anos é o seguinte:
- Quando você está em grupo, está bem. Quando está só, você está mal.
Até se alardeia a ideia segundo a qual a solidão é uma penitência e um castigo. As pessoas incorporaram essa percepção ao longo de milênios e ela está exarada no A.D.N. como uma mensagem indelével.
Está mais do que na hora de rever esse equívoco essencial.
Eu não estou mais nas savanas e Darwin é quase tão confiável quanto Adão no Jardim do Éden. O grupo não me protege mais como outrora, muito pelo contrário, o grupo me enfraquece e me maltrata. O grupo me subestima e me despreza  se eu não fizer exatamente o que ele determina. O grupo é despótico e deletério.
Quando eu estou só, posso estar muitíssimo bem e quando estou acompanhado posso estar preso  a uma terrível armadilha; a armadilha de que eu sou forçosamente social e gregário.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A mutação antropológica

Franco Berardi, em entrevista a Juan Íñigo Ibánez (Outras Palavras)
Neoliberalismo, assexualidade e desejo de morte. Filósofo italiano aponta: obsessão pelo sucesso individual e troca dos contatos corpóreos pelos digitais podem realizar distopia da humanidade insensível, para a qual já alertava Pasolini.
Uma das metáforas mais potentes – e de maior ressonância até nossos dias – no imaginário de Pier Paolo Pasolini é a de “mutação antropológica”. Trata-se de uma expressão que o cineasta, escritor e poeta italiano utilizava para ilustrar os efeitos psicossociais produzidos pela transição de uma economia de origem agrária e industrial para outra, de corte capitalista e transnacional.
Durante os anos 1970, Pasolini identificou, em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas, uma verdadeira transmutação nas sensibilidades de amplos setores da sociedade italiana, em consequência do “novo fascismo” imposto pela globalização. Acreditava que esse processo estava criando – fundamentalmente por meio do influxo semiótico da publicidade e da televisão – uma nova “espécie” de jovens burgueses, que chamou de “os sem futuro”: jovens com uma acentuada “tendência à infelicidade”, com pouca ou nenhuma raiz cultural ou territorial, e que estavam assimilando, sem muita distinção de classe, os valores, a estética e o estilo de vida promovidos pelos novos “tempos do consumo”.
Quarenta anos depois, outro inquieto intelectual de Bolonha – o filósofo e teórico dos meios de comunicação Franco “Bifo” Berardi – acha que o sombrio diagnóstico de Pasolini tornou-se profético, diante da situação de “precariedade existencial” e aumento de transtornos mentais que as mudanças neoliberais provocaram.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é hoje a segunda causa de morte entre jovens e crianças – a grande maioria do sexo masculino – entre 10 e 24 anos. Do mesmo modo, a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento suicida – será em 2020 a segunda forma de incapacidade mais recorrente no mundo.
Berardi acredita que esses dados – assim como a maioria dos atos violentos produzidos nos últimos anos, os assassinatos em massa ou os atentados suicidas radicais – estão estreitamente vinculados às condições de hipercompetição, subsalário e exclusão promovidos pelo ethos neoliberal. Sugere que ao analisar os efeitos que a economia de mercado tem em nossas vidas, devemos também incorporar um elemento novo e transcendente: o modo como os fluxos informativos acelerados a que estamos expostos por meio das “novas tecnologias” influem em nossa sensibilidade e processos cognitivos.
Esclarecimento: Berardi não é nenhum tecnófobo ou romântico dos tempos do capitalismo pré-industrial. Compreende – e utilizou a seu favor – os avanços que a tecnologia introduz em nossas vidas.
Desde o final dos anos 1960, liderou diversos projetos de comunicação alternativa, tais como a revista cultural A/traverso, a Rádio Alice (uma das primeiras emissoras livres da Europa), a TV Orfeu (a primeira televisão comunitária da Itália). Participou de programas educativos da Rádio e Televisão Italiana (RAI) ligados ao funcionamento e efeitos das novas tecnologias. Além disso, “Bifo” foi um observador atento de fenômenos contraculturais como o ciberpunk, ou as possibilidades futuras de governos tecnofascistas.
Sua carreira foi fortemente marcada pelo compromisso político. Foi membro ativo – desde a Universidade de Bolonha, onde graduou-se em Estética – da revolta de Maio de 68. No início dos anos 70, esteve vinculado ao movimento de esquerda extraparlamentar “Poder Operário”. Posteriormente – no começo dos 80, durante seu exílio na França – frequentou Michel Foucault e trabalhou junto com Félix Guattari no campo disciplinar então nascente da esquisoanálise. Berardi é autor de mais de vinte livros, entre os quais destacam-se El Alma del Trabajo: desde lá alienación a la autonomia (A alma do trabalho: da alienação à autonomia), Generación post-alfa. Patologías e imaginarios en el semiocapitalismo (Geração pós-alfa. Patologias e imaginários no semiocapitalismo), Héroes: asesinato de masa y suicidio (Heróis: assassinato de massa e suicídio) e Fenomenología del fin (Fenomenologia do fim).
Originalmente em "Insurgência"

sábado, 22 de julho de 2017

Pascal e as novas tecnologias

Primeiro, vamos entender o que é "Divertissement", "Divertimento" segundo Blaise Pascal. Divertir-se, hoje é distrair-se, espairecer, deleitar-se, desentediar-se, etc.
Antes do século XVII, a palavra conforme a sua etimologia latina, (divertere) significava "ação de desviar de" por exemplo desviar um bem de um inventário. Pascal constrói a partir da etimologia uma categoria moral. O "Divertimento" é uma prática de esquiva, típica da existência humana. Trata-se  de não pensar em nada que nos aflija e que nos desvie da realidade desagradável. Esta realidade desagradável não é um mal circunstancial, por exemplo um luto ou um fracasso sentimental ou profissional; é uma infelicidade constitutiva de nossa existência. Nossa condição é a de um ser fraco, mortal, exposto à doença, à solidão e ainda por cima privado do único ser capaz de solucionar todo este imbróglio:deus.
Considerando que os homens não podem curar a morte, a miséria e a ignorância, não pensar nesta situação é a solução da grande maioria.
Nada é mais insuportável ao homem que ficar em pleno estado  de repouso, sem paixões, sem atividades, sem divertimento. Em repouso, (en repos) ele sente o seu  nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua impotência e o seu vazio. 
É neste contexto, que as novas tecnologias se prestam a tornar a fuga muito mais possível e muito bem sucedida. Acho que as novas tecnologias não foram apenas criadas para facilitar relações, difundir informações e fomentar intercâmbios. A principal função das redes sociais, internet e etc, é promover de maneira muito eficaz a fuga de si próprio e  a não-reflexão. Aliás, nunca se viveu uma época tão alienante, superficial e anti-introspectiva.  

A Miséria do Divertimento

Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto menos divertido, como os Santos e Deus. - Sim; mas não sendo feliz pode animar-se pelo divertimento? - Não; porque vem doutro sítio e de fora; e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis.
(...) A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.
Blaise Pascal, in "Pensamentos"

quarta-feira, 19 de julho de 2017

A solidão não tem solução

-Um cachorrinho resolveria a sua solidão?
- Não
- Um gatinho seria a solução para a sua solidão?
- Não
- Uma família elimina a sua solidão?
- Não
- Um namoro acaba com a sua solidão?
- Também não
- Um trabalho atenua a sua solidão?
- Absolutamente, não
- Viajar para Paris acaba com a sua solidão?
- Non
A solidão é intrínseca e inexorável. A solidão não tem solução, a solidão é a solução.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

A insanidade segundo Nietzsche

Confirmação e denúncia

Existe uma nuvem de insanidade que cobre todo o planeta. Por vezes, é uma cobertura mista de insanidade e perplexidade. Há alguma coisa muita errada com a espécie humana e ninguém diz nada.
Se você confirmar a insanidade reinante, você é um cara legal e todo mundo diz que você é muito bem educado e todo mundo te adora. O preço da popularidade é módico: confirmar a frivolidade, a mediocridade e a loucura geral.
As pessoas se agarram às próprias máscaras, porque sem elas, não sobra quase nada. Em geral, as pessoas são as próprias máscaras. Desmascará-las é ofendê-las mortalmente; é confrontá-las com o nada e com o vazio. Por isso, é muito fácil fazer inimigos.
Se você repete como um credo as histórias puídas e mentirosas contadas ao longo de gerações, você é bacana. Se você confirma ainda que não concorde, por pura covardia, você até tem a impressão de ser amado pelo grupo. Acontece que o grupo não ama ninguém. Você está iludido e enganado.
Agora, se você denuncia a macacada geral, o teatro a céu aberto, o hospício consentido, a estupidez globalizada, o descalabro metafísico da condição humana, o demônio que mora nos seres humanos, as injustiças banalizadas e o circo institucional, você é do mal. São muito poucos os que te apoiam. Quase ninguém tem coragem de te seguir embora saibam no fundo dos seus íntimos  insondáveis e confusos que você vê, enxerga e se limita ao que realmente tem importância. Todo o resto é para enfrentar o tédio e passar o tempo.

sábado, 15 de julho de 2017

O fundamentalismo egoico

Eu sou do tempo dos egoístas onde até se consentia um certo egocentrismo como característica de personalidade.
Hoje, os egos extrapolaram todas as dimensões e se tornaram obsessão, histeria e fanatismo. Só se fala em amor próprio, autoestima e autoajuda. A egolatria chegou ao seu paroxismo.
Hoje, as pessoas estão doentes de si mesmas. Os descalabros que vemos à nossa volta são a consequência inequívoca de íntimos enfermos. Redefiniu-se o conceito de grupo e o que impera é uma geografia bizarra onde abundam ilhotas tolas. O arquipélago se masturba e não dialoga mais. Não há mais continentes. Contentamo-nos com algumas penínsulas heroicas e o resto é mar.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Amor de cão

PET LOVE
O amor humano que sempre foi um sentimento raríssimo, parece que está em franca extinção. O homem não é apenas capaz de extinguir as espécies animais e vegetais que povoam este belíssimo planeta, ele também é muito competente para destruir o que é bom e sublime. 
Nunca a indústria dos pets arrecadou tantos lucros. Fecham-se livrarias e abrem-se academias de musculação e pet shops. A descrença no ser humano, ainda que não afirmada - vivemos uma época do tácito em que nada se pode dizer, mas quem for minimamente perspicaz pode compreender o que se passa - é gritante e extremamente preocupante.
Nunca vi tanta gente passeando cachorro e nunca vi tanta gente falando português com cachorro. Acho que vou lançar um curso de português para cachorros e vou enriquecer.
Eu adoro cachorros. Amo toda a natureza não humana, com todos os seus animais ditos irracionais e com toda a sua vegetação desprezada , mas não concebo esta substituição estratégica de seres humanos por cachorros.
O inquestionável afeto dos cachorros está muito longe do que ambicionamos como humanos. "Não tem tu, vai tu mesmo".
A carência afetiva que nos caracteriza teve que manobrar para nos livrar da sensação insuportável de solidão e desamparo. E ainda bem que existem os cachorros para nos salvar um pouco do abandono e da desilusão.