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terça-feira, 2 de agosto de 2016

Os novos bárbaros

Nos achamos tão livres. Como donos de tablets e celulares, vamos a qualquer lugar na internet, lutamos pelas causas mesmo de países do outro lado do planeta, participamos de protestos globais e mal percebemos que criamos uma pós-submissão. Ou um tipo mais perigoso e insidioso de submissão. Temos nos esforçado livremente e com grande afinco para alcançar a meta de trabalhar 24X7. Vinte e quatro horas por sete dias da semana. Nenhum capitalista havia sonhado tanto. O chefe nos alcança em qualquer lugar, a qualquer hora. O expediente nunca mais acaba. Já não há espaço de trabalho e espaço de lazer, não há nem mesmo casa. Tudo se confunde. A internet foi usada para borrar as fronteiras também do mundo interno, que agora é um fora. Estamos sempre, de algum modo, trabalhando, fazendo networking, debatendo (ou brigando), intervindo, tentando não perder nada, principalmente a notícia ordinária. Consumimo-nos animadamente, ao ritmo de emoticons. E assim, perdemos só a alma. E alcançamos uma façanha inédita: ser senhor e escravo ao mesmo tempo.
Como na época da aceleração os anos já não começam nem terminam, apenas se emendam, tanto quanto os meses e como os dias, a metade de 2016 chegou quando parecia que ainda era março. Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguenta. O corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo. Pelo menos até conseguirmos nos livrar desse corpo que se tornou uma barreira. O problema é que o corpo não é um outro, o corpo é o que chamamos de eu. O corpo não é limite, mas a própria condição. O corpo é. (…)
ELIANE BRUM

sábado, 30 de julho de 2016

Miméticos e proféticos

Os miméticos engrossam as estatísticas da maioria. Deve haver um grande prazer e conforto em imitar. Imitar para usufruir da recompensa enganosa de ser igual. Raros são os proféticos. São poucos os que se contentam com a mudança de cascas e indumentárias.
As massas se comprazem em arremedar e repetir. As massas fazem muito barulho e o barulho da multidão pode iludir os menos sensíveis.
Está tudo na mesma. No essencial, nada mudou. Para seres de superfície, qualquer movimento é sinônimo de mudança. Para quem  se diverte no fundo do poço, não há nada de novo sob o sol. 
Apesar de tudo o que fizemos, ainda somos como os moradores dessa Roma que não nos abandona. Somos Romanos tecnológicos e conectados. 
A verdadeira revolução redentora nunca aconteceu. O que pode mudar o mundo está no coração dos homens. Revolução digna desse nome, é de dentro para fora. Fora de nós acontece muita coisa; dentro de nós, está tudo praticamento intacto.
Os sentimentos têm a idade do homo sapiens. A inveja, o ódio, o egoísmo, a soberba, o orgulho, a vaidade, a ganância, a injustiça e a estupidez remontam à destruição do jardim do Éden.

terça-feira, 19 de julho de 2016

A cultura do silêncio

A hipocrisia emocional
Há muitos séculos que vigora a lei do silêncio. Existem assuntos-tabu como a morte, a fragilidade do humano, o non-sens do existir, a inveja e a felicidade, para citar apenas alguns. A espécie fugitiva sempre opta pelo que é frívolo. Prevalece a fobia fundamental a tudo que é essencial. Que bom que existe a metereologia e o futebol para evitar o silêncio e o mutismo das massas.
Atualmente, dentre os assuntos-tabu que sempre caracterisaram a falida civilização ocidental, está a felicidade. Supõe-se e é pura suposição, que está tudo bem e que o bem-estar impera. Hoje, problemas são sintomas de moléstia grave. Qualquer dificuldade emocional é trancada a sete chaves e proscrita.
Ao deduzirmos que todos são felizes, criamos uma profunda angústia em quem não é tão feliz assim. Nem todo mundo é capaz de atingir esse elevadíssimo padrão emocional. Eu não me surpreendo mais porque sei que a senha da convivência grupal é a mentira ou a omissão. E também sei que não há pior grosseria que a verdade.
Essa inócua felicidade facebuquiana provoca mais estragos do que se consegue imaginar. A felicidade teria que mudar de nome se fosse assim tão fácil.
Sugiro que parem com essa propaganda enganosa de felicidade absolutamente falsa. A felicidade gratuita dessa maioria mitômana, espalha muita infelicidade em quem vive por comparação e acredita nas balelas dos narcisos obscenos expostos indecentemente nessa pornografia contemporânea do sentimento.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Solitude

Enquanto enchia minha farta taça de vinho pela segunda vez, já com os dentes e lábios roxos, dei-me conta de que a mesa a que me sentava estava vazia, exceto por mim. Na cozinha também havia ninguém, assim como em todo o apartamento. Sequer música se podia ouvir. Eu estava só e engolida pelo silêncio.
Por um segundo, incomodou-me um pouco que a ideia de que alguém, vendo aquilo, pudesse concluir ser um momento de solidão abandonada. O ato de beber sozinho carrega a história de escritores decadentes e amores de insucesso, conferindo ao álcool um comportamento ambíguo: consumido em grupo, serve para brindar a vida; já em isolamento, serve para afogar as mágoas.
Entre um gole e outro de vinho, a verdade me caiu como um estalo: entre mim e aquele líquido, havia nada além de glória. Não existia ânsia por companhia, tampouco sofrimento por sua ausência. Pareceu-me injusto que não houvesse na Língua uma palavra que expressasse a glória de estar só, mas felizmente o sociólogo Paul Tillich teve a cortesia de me apresentá-la. Solitude. As quatro sílabas dançavam em minha língua já meio dormente. “O idioma criou a palavra solidão para expressar a dor de estar sozinho. E criou a palavra solitude para expressar a glória de estar sozinho.” A Língua quase nunca desaponta.
Jobim inventou que é impossível ser feliz sozinho. Terceirizando a responsabilidade pela plenitude do espírito, criou-se o estigma do hedonismo acompanhado, de que a felicidade só é boa quando dividida. As redes sociais estão aí para perpetuar o sentimento: haja sorrisos, brindes, porres e bossa. Haja viagens, selfies em grupo, bares lotados e músicas entoadas em coro. Ficar sozinho parece coisa de gente humilhada e infeliz, mas talvez não suportar a própria companhia por um instante seja o autêntico sinal de infelicidade. Pessoas que têm hábitos como ir a cinema, beber, dançar e fazer compras sem companhia causam grande furor às demais, ainda que ninguém tenha a curiosidade de indagar se aquilo é ato intencional. Só que a balbúrdia costuma causar ilusão de felicidade e a verdadeira fuga pode residir aí.
É bem provável que uma vida inteira de solitude se transforme em solidão, mas é curioso como viver apenas em grupo cansa e chega uma hora em que tudo o que se quer fazer é correr dali para a calmaria do mar, que só é alcançada quando se nada para dentro. Solitude é uma opção, um deleite, uma vontade. Talvez sua graça seja saber que é facultativa e que, quando a alma pedir por compartilhamento, haverá pessoas queridas que ficarão felizes em oferecê-lo.
Necessário, portanto, ser forte e seguro para curtir a solitude, sendo a recompensa tanto simbólica quanto aproveitável. Basta perceber que grandes decisões e guinadas na vida costumam ser precedidas por momentos de recolhimento. Bastar-se não se restringe à negação das pessoas e do mundo, e, sim, saber que existir não depende necessariamente de alguém além de si.
Lara Brenner - Revista Bula

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Solidão e comunhão

Do gregário ao solitário
Na dosagem da solidão e da comunhão, quase todos preferem a comunhão. A ideia de comungar é sedutora e linda, embora esconda muitos dissabores.
Começamos comungando, mas comungar não basta e não é tudo na procura da felicidade.
A maturidade supõe saber viver dentro das fronteiras de si próprio. Quem passa por si mesmo, descobre que comungar não é obrigatório; pode ser opcional. E isso é muito bom.

sábado, 28 de maio de 2016

Curtidas - o novo valor que se alevanta

CURTIR
vtd 1 Tornar imputrescível e mais brando (couro, pelo); surrar. vtd 2 Preparar, pondo de molho em líquido adequado. vtd 3 Conservar em salmoura. vtd 4 Remolhar para extremar a parte filamentosa de (planta têxtil). vint 5 Fermentar: "O esterco curtia em um canto do curral." vtd 6 Endurecer pela exposição às intempéries. vpr 7 Tornar-se calejado, endurecido, insensível. vtd 8 Aguentar, padecer, sofrer: Curtir afrontas, censuras, penas. "Em tua dor curtiu angústia imensa" (Barão de Paranapiacaba). vtd 9 Passar ou viver sofrendo: "Grande parte de sua vida curtiu em longo exílio." vtd 10 gír Desfrutar com grande prazer: "Curtir um som." "Curtir a vida."

É interessante constatar as mudanças de sentido pelas quais a palavra passou. O Vtd 10 que é o sentido atual, é no mínimo inusitado e bizarro. Quem será que inventa e consolida os novos sentidos das palavras?
Hoje, não basta o Capitalismo onde o valor supremo é o dinheiro, você também tem que ser curtido pelos membros da sua espécie. A curtição não se limita a pequenos grupos como a família ou os colegas de trabalho, atualmente, você pode ter o prazer inefável de ser curtido pelo planeta inteiro.
Então, não basta mais ser apenas rico; você também tem que ser gostado. Rico e amado, eis o novo ideal, nesta época em que falecem todas as ideologias. A não ser que você compre as curtidas. Aí, só o vigora o capital.
É muita carência afetiva para pouquíssimos corações capazes de amar. O curioso é que você ( estou cansado de usar a palavra você) na grande maioria das vezes, será amado por desconhecidos; gente que nunca vai ver. Sempre lhe sobrará, no entanto, o poder e o privilégio de jogar na cara de todos, quantas curtidas teve.
Arranjaram mais uma solução fácil para a difícil arte de gostar. E quem não é assim tão curtido, como eu, por exemplo. Será que devo me sentir preterido pelo amor profundo desta humanidade tão cheia de sentimentos sublimes e magníficos? Será que devo entrar em profunda depressão e pensar na minha auto-extinção? Como invejo os que são tão curtidos. Ser curtido é ser feliz. Entendeu?
Neste mundo de tanta indiferença e de tão raros sentimentos nobres, qualquer besteirinha ilude os nossos egos entorpecidos e ávidos de amor e bem querer. Qualquer manifestação de amor postiço conquista o vazio dos corações aflitos. 

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A guerra dos egos

Eu que sou do tempo da guerra fria, começo concluindo que o ser humano não quer e não sabe viver em paz. É muito pouca coisa pra muitos vermes. 
Agora, tenho que me envolver na terceira  guerra mundial: a guerra dos egos. Vivo num mundo absolutamente gordo; almas infladas em corpos obesos.
Não queria me dar ao trabalho de encher a minha alma de ar só para poder entrar na guerra, mas a guerra está declarada. A continuarmos assim, também a alma vai fermentar e soltar flatulências. Não bastavam os flatos orgânicos, faltavam-nos os peidos anímicos. Como é deprimente viver numa sociedade que fede por todas as perspectivas e ainda destrói a camada de ozônio.
Hoje, falam em cibridismo, o preâmbulo da mais nova insanidade. Querem que eu viva na corda bamba entre o online e o offline. Eu não sou equilibrista e já não gosto mais de circos depois que tiraram os leões infelizes, angustiados e aos prantos.
O orgulho exacerbado e a vaidade extrema vão acabar com a espécie. Eu só quero cinco minutos antes do fim, para comemorar com Moët & Chandon, Épernay - France.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Entre dois mundos

O mundo esquizóide
No virtual, todos me amam e todos são felizes. Todos mostram o que lhes convem expôr. Todos me curtem e todos me marcam. No virtual, só palavras gentis - a gentileza é obrigatória. No virtual, se brigar com um, brigo com o grupo todo, brigo com o mundo inteiro. Tudo é público e escancarado e não há mais portas; há filtros. Todos empunham as mesmas bandeiras surradas e previsíveis. Todos perderam a timidez e se desnudam numa orgia existencial sem precedentes; o pudor já faleceu há décadas.
No real, nem um bom dia, nem um aceno de cabeça, nada. O real está ficando quieto e assustador. Quase todos debandaram para o virtual. O mundo fugiu para o Facebook e o meu mundo está deserto. 
Choro a morte do mundo e estou só nas ruínas do fim do mundo. Viver de mentirinha também é viver; esta é a nova ordem mundial. Falo com estranhos com  intimidade e  cerimônia. Os desconhecidos agora fazem parte do meu cotidiano. Amo e detesto gente que nunca vou ver na vida. Converti carência em arrogância e faço poses para a plateía. Vibro e  me regozijo quando a poderosa e sagrada internet nota a minha pobre presença.
Até há os que não sabem mais o que é carne e osso,  e têm uma ideia vaga da fisiologia. Projeto  imagens e pretendo ter relações humanas profundas com espectros. 
Comovo-me  e me enterneço com os rastros dos fantasmas cibernéticos. Resigno-me e me acovardo porque não tenho nenhum poder sobre as circunstâncias e  as tendências. Sinto que me tornei um produto e me dou ao sacrifício do consumo. Estou só num grande alvoroço e me empenho para me adaptar à esquizofrenia. Procuro gente e me contento com qualquer vestígio de humanidade.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Zoos humanos

A expressão zoo humano descreve uma prática cultural que prevaleceu nos impérios coloniais até a II Guerra Mundial. A expressão foi popularizada na França pela publicação em 2002 da obra Zoos humains, escrita por vários historiadores franceses especialistas nesse fenômeno cultural.
As exposições coloniais eram ocasiões onde o público da metrópole tinha contato com uma amostra de tribos expostas em situações forçadas num ambiente reconstituído.
No final do século XIX, não havia um único cidadão francês que não tivesse descoberto uma reconstituição "autêntica" desses ambientes selvagens, povoados de homens e de animais exóticos, entre uma exposição, a missa dominical e o passeio no lago.
Os zoológicos humanos, exposições etnológicas ou aldeias negras, continuam sendo assuntos complexos a serem abordados por países que exaltam a igualdade de todos os seres humanos.
De fato, esses "zoos", nos quais indivíduos "exóticos" misturados a animais selvagens eram mostrados atrás das grades ou em recintos delimitados a um público ávido de distração, constituem a prova mais evidente da defasagem que existe entre o discurso e a prática no tempo da construção dos impérios coloniais.
Hoje, em pleno século XXI, pode-nos parecer incrível e aberrante, mas ainda não há muito tempo, eram uma realidade nas principais cidades da Europa Ocidental. Em 1958, em Bruxelas, os Zoos Humanos eram uma atração para muitos visitantes que se consideravam oriundos de uma "raça superior".
Estas exposições geralmente enfatizavam as diferenças entre os europeus ocidentais e os povos não europeus ou com um estilo de vida considerado primitivo.
Aconselho o documentário Zoologicos Humanos.
https://youtu.be/IRYtkxMYogo

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Palavras não se guardam

Com a praga do P.C.( Politicamente Correto), como diz o Luis Filipe Pondé, há uma economia forçada da palavra adequada e certa. Palavras existem para serem ditas ou escritas. Para o bem e para o mal, escreva e diga. Fale de amor, de ódio e do que quiser. Não fale para não dizer nada, nem escreva para cansar e embromar.
Não gosto de quem escolhe palavras como se catasse feijão. Diga. Escreva. Eu decido se é bom ou mau, se dói ou não. Não seja um editor de textos nem um empilhador de palavras não ditas, seja gente. E se você pensa que selecionar palavras, é uma grande estratégia de convivência social, você só vai me dar razão quando as palavras te sufocarem e decretarem a tua morte por pura fraude.