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sábado, 16 de dezembro de 2017

O novo filósofo da sociedade moderna

Byung-Chul Han
Um dos mais reverenciados e inovadores filósofos da atualidade, Byung-Chul Han nasceu em 1959, na Coreia do Sul, mas mudou-se de armas e bagagens para a Alemanha, na década de 1980, familiarizando-se por lá com as dissertações de pensadores como Martin Heidegger. É autor de mais de uma dezena de ensaios que examinam algumas das principais ameaças do indivíduo na sociedade moderna, entre as quais a escassez de tempo para a reflexão e o vazio dos relacionamentos na era digital.
* "A sociedade do cansaço" - Sugestão de leitura de Byung-Chul Han

sábado, 2 de dezembro de 2017

A barbárie sutil





Nos achamos tão livres. Como donos de tablets e celulares, vamos a qualquer lugar na internet, lutamos pelas causas mesmo de países do outro lado do planeta, participamos de protestos globais e mal percebemos que criamos uma pós-submissão. Ou um tipo mais perigoso e insidioso de submissão. Temos nos esforçado livremente e com grande afinco para alcançar a meta de trabalhar 24X7. Vinte e quatro horas por sete dias da semana. Nenhum capitalista havia sonhado tanto. O chefe nos alcança em qualquer lugar, a qualquer hora. O expediente nunca mais acaba. Já não há espaço de trabalho e espaço de lazer, não há nem mesmo casa. Tudo se confunde. A internet foi usada para borrar as fronteiras do mundo interno que agora também existe lá fora. Estamos sempre, de algum modo, trabalhando, fazendo networking, debatendo (ou brigando), intervindo, tentando não perder nada, principalmente a notícia ordinária. Consumimo-nos animadamente, ao ritmo de emoticons. E assim, perdemos só a alma. E alcançamos uma façanha inédita: ser senhor e escravo ao mesmo tempo.Como na época da aceleração os anos já não começam nem terminam, apenas se emendam, tanto quanto os meses e como os dias, a metade de 2016 chegou quando parecia que ainda era março. Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguenta. O corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo. Pelo menos até conseguirmos nos livrar desse corpo que se tornou uma barreira. O problema é que o corpo não é um outro, o corpo é o que chamamos de eu. O corpo não é limite, mas a própria condição. O corpo é.
Os autônomos são autômatos, programados para chicotear a si mesmos.
Chegamos a isso: a exploração mesmo sem patrão, já que o introjetamos. Quem é o pior senhor se não aquele que mora dentro de nós? Em nome de palavras falsamente emancipatórias, como empreendedorismo, ou de eufemismos perversos como “flexibilização”, cresce o número de “autônomos”, os tais PJs (Pessoas Jurídicas), livres apenas para se matar de trabalhar. Os autônomos são autômatos, programados para chicotear a si mesmos. E mesmo os empregados se “autonomizam” porque a jornada de trabalho já não acaba. Todos os trabalhadores são culpados porque não conseguem produzir ainda mais, numa autoimagem partida, na qual supõem que seu desempenho só é limitado porque o corpo é um inconveniente.A sociedade do século 21 não é mais disciplinar, como na construção de Foucault (1926-1984). Mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de obediência”, mas “sujeitos de desempenho e de produção”. São empresários de si mesmos. Se a sociedade disciplinar era uma sociedade de negatividade, a desregulamentação crescente acaba por aboli-la. A afirmação Yes, we can, segundo o filósofo Han, expressa o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de “proibição”, “mandamento” ou “lei”, entram “projeto”, “iniciativa” e “motivação”. Assim, não é um acaso que a depressão é a doença dessa época. A sociedade disciplinar é dominada pelo “não”. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, para a qual teríamos “evoluído”, ao contrário, produz depressivos e fracassados. A sociedade do desempenho, nas palavras de Han, produz infartos psíquicos.
“Por falta de repouso, nossa civilização caminha para a barbárie”
A contemplação é civilizatória. E o tédio é criativo. Mas ambos foram eliminados pelo preenchimento ininterrupto do tempo humano por tarefas e estímulos simultâneos. Você executa uma tarefa e atende ao celular, responde a um WhatsApp enquanto cozinha, come assistindo à Netflix e xingando alguém no Facebook, pergunta como foi a escola do filho checando o Twitter, dirige o carro postando uma foto no Instagram, faz um trabalho enquanto manda um email sobre outro e assim por diante. Duas, três… várias tarefas ao mesmo tempo. Como se isso fosse um ganho – e não uma perda monumental, uma involução. Voltamos ao modo selvagem. Nietzsche (1844-1900), ainda na sua época, já chamava a atenção para o fato de que a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”. Frente à vida desnuda, aponta Han, reagimos com hiperatividade, com a histeria do trabalho e da produção. A agudização hiperativa da atividade faz com que essa se converta numa hiperpassividade. Aderimos a todo e qualquer impulso e estímulo. Em vez da liberdade, novas coerções. Só por meio da negatividade do parar interiormente, o sujeito de ação pode dimensionar todo o espaço da contingência que escapa a uma mera atividade. Vivemos, diz ele, num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios. 
Assim, o que parece movimento pode ser apenas adesão e paralisia. O ativo, ou o hiperativo, talvez seja de fato um hiperpassivo. Se há um tempo só, o do acontecimento, ou se tudo é acontecimento, nada de fato acontece. Em parte, explica a sensação de que tudo é efêmero, de que o espasmo de um segundo atrás, que produziu gritos e fúrias, tornou-se distante, substituído por outro que também produz gritos e fúrias, e que um segundo adiante já não será. E logo não se sabe exatamente pelo que se grita e pelo que se enfurece, mas o imperativo é seguir gritando e se enfurecendo. 
Nessa atualidade histérica, a irritação substitui a ira. Voltando às palavras de Han: “A ira é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado. Hoje, cada vez mais, ela cede lugar à irritação ou ao enervar-se, que não podem produzir nenhuma mudança decisiva”. Há que se escutar o mal-estar – e não calá-lo.
A positividade dessa época tem, no meu modo de ver, um desdobramento nessa crise tão particular do Brasil. Temos sido instados a ser “otimistas” ou a escolher este ou aquele lado “para recuperar o otimismo”. Como se a questão se desse em torno do otimismo/pessimismo, ou como se o otimismo fosse uma qualidade moral. Essa positividade também me parece aqui ganhar uma relação com a esperança, como já escrevi neste espaço. Como se o esperançoso tivesse uma qualidade moral a mais, o que o colocaria um ou vários patamares acima de todos os outros. E como se esse momento fosse uma questão de esperança ou de resgate da esperança, para além das manipulações marqueteiras mais óbvias. Pouco importa o otimismo/pessimismo, pouco importa a esperança. O buraco é muito mais fundo. 
Há que se escutar o mal-estar – e não calá-lo.
Vivê-lo num processo de interrogação, vivê-lo como movimento. Carregar os limites, sem confundir ter limites com estar paralisado. Não há potência total, não há tudo é possível, não há Yes, we can. Não ter potência total não é o mesmo que ser impotente. A ilusão da potência total é que acaba levando à impotência. Há potência em dizer não – e há potência em não fazer. Como Bartleby, o personagem de Herman Melville intuiu, “prefiro não fazer” pode ser um ato de resistência e de reconexão com a própria humanidade.
“O computador é burro porque não é capaz de hesitar”
Em mais um paralelo com as crises do Brasil atual, chama a atenção a necessidade de respostas imediatas, de explicações instantâneas, de certezas. Em alguns momentos mais agudos, uma parcela da própria imprensa parece ter se esquecido de fazer perguntas. A exigência de respostas imediatas, respostas que não passem pela investigação e pela interrogação, leva à resposta nenhuma. Porque não há pergunta. Porque o pensamento está ausente, foi substituído pelo reflexo e pelo imperativo de preencher o vazio com palavras. Não há mérito na velocidade, nadas imediatos continuam sendo nadas. Ou coisa pior. Como aponta Han, apesar de todo o seu desempenho, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade para hesitar. Se o computador conta de maneira mais rápida que o cérebro humano e acolhe uma imensidão de dados é também porque está livre de toda e qualquer alteridade. É, por excelência, uma máquina positiva. Tornar essa positividade uma qualidade a ser imitada é uma estupidez a qual temos aderido. 
Há anos ouvimos tantos repetindo por aí: “Estou cansad@”. O cansaço, diz Han, é mais do menos eu. Mas a tragédia é que “o menos no eu se expressa como um mais para o mundo”. E assim, a sociedade do cansaço, enquanto uma sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping. E leva a um “infarto da alma.
Senhor e escravo ao mesmo tempo, temos uma chance enquanto houver também um rebelde. Escutá-lo é preciso. Anestesiá-lo não é. 
Trecho de Exaustos-e-correndo-e-dopados – De Eliane Brum, extraído de El País
*Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta sul coreano radicado na Alemanha.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Esclarecimentos sobre a inveja


No latim, invidia relaciona-se com a noção de "ver" (videre). O prefixo in associado à visão invejosa, que não desgruda dos bens alheios, mostra o quanto há de recusa e de ódio nesse olhar.
Não é à toa que se fala em "olho gordo", porque doentes e deformados estão os olhos de quem não se admira positivamente com o que dá alegria aos outros.
Dante, na Divina comédia, apresenta os invejosos no Purgatório, com os olhos costurados. Quem, durante a vida, não soube apreciar o bom e o belo com abertura de coração, depois da morte não conseguirá enxergar nada.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

De súbito

De súbito, todos ficaram susceptíveis. Estão todos tensos, demasiado sensíveis e com os nervos à flor da pele. Qualquer palavra mal colocada pode ser motivo de ódio e de processos. De súbito, todos se elegeram salvadores da humanidade. Todos sabem tudo e mais alguma coisa. São poucos os que escapam aos prazeres sórdidos da arrogância. 
Quase tudo é preconceito. São poucas as coisas que não são catalogadas como machismo. De súbito, surgiram centenas de novos transtornos elencados pela Sociedade Americana de Psiquiatria e paradoxalmente a felicidade se impõe e se esparrama nas redes sociais como o grande padrão irrefutável das sensações humanas. Os antidepressivos fabricam na surdina o formidável júbilo químico.
De súbito, exterminaram as boas maneiras e os bons dias são arrancados a ferros. Perdeu-se o gosto pelo som das palavras, pelas entonações e pela metalinguagem. Os corpos se expõem rabiscados e imperam espantosas bitolas de beleza física; os narcisos substituíram os terráqueos. 
De súbito, fala-se muito em diversidade e o que se vê é uma argumentação homogênea. A comunicação primitiva por imagens frívolas pretende sobrepôr-se à beleza e à grandeza da literatura. Ninguém mais lê nada, muito menos esta postagem.
De súbito, instaurou-se sub-reptícia e subliminarmente um fascismo alegre, bem disposto, regado a álcool e  com ares de extrema liberdade. Vivemos um fascismo  revisitado, atualizado e remasterizado pelas novas tecnologias. Nunca estivemos tão iludidos. Nunca foi tão apropriada a expressão: "as aparências enganam", para definir esta triste época.
De súbito, tornei-me impopular e detestado por ter a coragem que há muito deixou este mundo covarde que estrebucha nos paroxismos da mais suprema hipocrisia.
De súbito.

sábado, 28 de outubro de 2017

Mais felizes sozinhos






Você é do tipo de pessoa que troca sem pensar duas vezes uma noitada com os amigos por uma noite em casa vendo filmes? Já pensou, mais de uma vez, em sair da cidade grande e ter uma vida mais tranquila no campo? Gosta de receber pessoas em casa, mas fica realmente feliz depois que as visitas vão embora? Talvez você pense que é antissocial, mas na verdade, você só é alguém inteligente.
É o que mostra uma pesquisa feita por psicólogos da London School of Economics que descobriu que pessoas mais inteligentes preferem interagir em círculos sociais menores.
Para a realização do estudo, os cientistas entrevistaram mais de 15 mil pessoas entre 18 e 28 anos de diferentes localidades e descobriram que pessoas que apresentavam QI mais elevado se sentem melhor interagindo em pequenos grupos e ficam mais confortáveis quando estão sozinhas.
Os cientistas também perguntaram se essas pessoas se sentiam felizes. E descobriram que aquelas que que viviam em áreas mais densamente povoadas, disseram se sentir menos felizes. No entanto, o contato com os amigos e pessoas próximas poderia influenciar de forma positiva na vida dessas pessoas, fazendo com que se se sentissem mais felizes.
Teoria da Savana
Apesar de sermos seres sociáveis, os cientistas acreditam que uma explicação possível para que as pessoas se sintam mais confortáveis em pequenos grupos é a Teoria da Savana, segundo a qual reagimos às situações como nossos antepassados e que nossos comportamentos psicológicos estariam associados ao período em que a sociedade vivia na savana.
Naquela época, de acordo com os pesquisadores, os grupos sociais eram compostos por no máximo 150 pessoas. Apesar da evolução, nosso cérebro não teria se adaptado ao estilo de vida moderno. Isso explicaria o motivo de nos sentirmos mais confortáveis em um círculo social reduzido.
Originalmente em Minha Vida (Correção e adaptação)

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Fichados no Facebook

Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi um órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro durante o regime inaugurado com o golpe militar de 1964. Na época, dizia-se: "Esse está fichado no DOPS."Hoje, por termos perdido o hábito de ver, quase ninguém percebe que estamos todos fichados. O modismo das redes sociais promove um fichamento voluntário sem precedentes na história da humanidade. Estamos auto-fichados no Facebook, no Instagram, no Google+, no Twitter, etc.
A vigilância que esses mecanismos promovem é avassaladora. A ingerência de todas essas plataformas eletrônicas na vida das pessoas chega a me causar indignação. E o pior que não sabemos quem nos controla. Os controladores não dão as caras e não se consegue falar com eles diretamente.
Esta crítica é também uma autocrítica, visto que eu participo das redes sociais e sirvo-me delas para me exprimir sempre com medo de ser censurado, bloqueado e até mesmo proibido.
Abdicamos do precioso direito ao anonimato para sermos conhecidos? Conhecidos para quê? Queremos ser famosos por alguns segundos. Para que serve exatamente essa celebridade meteórica? O anseio por fama e reconhecimento não passa de mera exposição gratuita e sem sentido. Não seria melhor preservarmos a nossa boa e sagrada privacidade?
Junte-se a este estado de coisas, o fichamento em prédios públicos e a miríade de câmeras que nos vigiam todos os dias. Pedem-nos para sorrir  para disfarçar o que realmente está sendo feito: espionar, controlar, supervisionar e fiscalizar. É impossível sorrir nestas circunstâncias. Também dizem que as câmeras existem para a nossa segurança. Por acaso, os bandidos deixaram de agir intimidados pelas câmeras?
Não satisfeitos em nos ficharmos alegremente nas redes sociais, ainda estamos sujeitos a todas as formas de denuncismo barato, característica de todos os regimes de exceção, vide nazismo, fascismo, stalinismo, etc. O controle sistemático do Estado e do Grupo sobre o indivíduo, é sempre muito mais eficaz quando existe o mundo inteiro disposto a nos delatar. 
Redes sociais, câmeras por todos os lados, apreensão, medo e denúncias de todos os tipos que na maioria dos casos não passam de calúnia e difamação, este é o estado do mundo em outubro de 2017.
P.S. - Em 1947/1948, George Orwell já pressentia tudo isto, Aldous Huxley, anos mais tarde confirmou a suspeita que agora é pura realidade.

sábado, 9 de setembro de 2017

A destituição do outro

Não me interpretem mal. Não pretendo aqui, fazer a apologia do narcisismo e muito menos, inflar ainda mais os egos. Não é isso.
Não podemos continuar assim, atribuindo aos outros essa importância descomunal. O outro tem que ser desempossado, exonerado, desautorizado e só quem já sofreu muito nas mãos dos outros, tem a coragem suficiente para destituí-los. 
Reflita e constate o quão estúpido é o poder que atribuímos aos outros. Praticamente, vivemos para os outros ou na expectativa do que vem dos outros. O nosso comportamento é determinado pelos outros - massa ignara que nos acossa e importuna. Temos que ser capazes de prescindir dos outros, sem nunca deixar de conviver com eles.
Desative os outros e eu não estou lhe dando um conselho. Desligue-se um pouco e fale-me dos resultados. Você vai se sentir só, mas a solidão tem o cheiro do seu destino e é o melhor resumo da sua ópera.
A maior, a mais verdadeira e a principal relação, é com você; não com os outros. Experimente brincar com os seus brinquedos e esqueça um pouco esses meninos e meninas envelhecidos pela precocidade e pela arrogância.
P.S. - Ressalvo os amigos que são raríssimos e têm função precípua.

sábado, 2 de setembro de 2017

Tempos de secreta angústia


O sociólogo polonês Zygmunt Bauman declara que vivemos em um tempo que escorre pelas mãos, um tempo líquido em que nada é para persistir. Não há nada tão intenso que consiga permanecer e se tornar verdadeiramente necessário. Tudo é transitório. Não há a observação pausada daquilo que experimentamos, é preciso fotografar, filmar, comentar, curtir, mostrar, comprar e comparar. O desejo habita a ansiedade e se perde no consumismo imediato. A sociedade está marcada pela ansiedade, reina uma inabilidade de experimentar profundamente o que nos chega, o que importa é poder descrever aos demais o que se está fazendo. Em tempos de Facebook e Twitter não há desagrados, se não gosto de uma declaração ou um pensamento, deleto, desconecto, bloqueio. Perde-se a profundidade das relações; perde-se a conversa que possibilita a harmonia e também o destoar. Nas relações virtuais não existem discussões que terminem em abraços vivos, as discussões são mudas, distantes. As relações começam ou terminam sem contato nenhum. Analisamos o outro por suas fotos e frases de efeito. Não existe a troca vivida.
Ao mesmo tempo em que experimentamos um isolamento protetor, vivenciamos uma absoluta exposição. Não há o privado, tudo é desvendado: o que se come, o que se compra; o que nos atormenta e o que nos alegra.
O amor é mais falado do que vivido. Vivemos um tempo de secreta angústia. Filosoficamente a angústia é o sentimento do nada. O corpo se inquieta e a alma sufoca. Há uma vertigem permeando as relações, tudo se torna vacilante, tudo pode ser deletado: o amor e os amigos.
“Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo”. Zygmunt Bauman
Originalmente em Revista Pazes

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

A estranha geração dos adultos mimados


O fato de termos sido criados com cuidado e afeto pelos nossos pais, começou a confundir-se com uma espécie de sensação de que todos devem nos tratar como eles nos trataram.
Tudo começou com uma colega minha de estágio, há mais de 10 anos, que pediu demissão por acreditar que “não foi criada para ficar carregando papel”. Sim, carregar papel fazia parte das nossas tarefas, enquanto ajudávamos o juiz e os demais servidores públicos com os processos do Tribunal. Acompanhávamos audiências, ajudávamos com os despachos e, sim, carregávamos papéis entre o segundo e o quarto andar do edifício.
Os pais da menina convenceram-na de que ela era boa demais para aquilo. Não importava que nós fôssemos meninas de 19 anos, no segundo ano da faculdade, sem qualquer experiência, buscando aprender alguma coisa e ganhar uns poucos reais para comer hamburguer nos finais de semana. Ela, que tinha a certeza de ser uma joia rara, foi embora, deixando sua vaga vazia no meio do semestre e sobrecarregando todos os demais, inclusive eu, sem nem se constranger com isso.
O tempo passou e, quando eu já era advogada, tive um estagiário de vinte e poucos anos que, três meses depois de ser contratado, solicitou dois meses de férias. Eu nem sequer entendi o pedido. Perguntei se ele estava doente ou se havia algum outro problema grave. Ele me respondeu que não, que simplesmente tinha decidido ir para a Califórnia passar dezembro e janeiro, pois a irmã estava morando lá e ele tinha casa de graça. Eu mal podia acreditar no que estava ouvindo. Deixei ele ir e pedi que não voltasse mais.
Alguns anos depois, ouvi um grande amigo me dizer que iria divorciar-se. Ele havia casado fazia menos de um ano, com direito a uma imensa festa, custeada pelos pais dos noivos. Mais uma vez perguntei se algo de grave tinha ocorrido. Ele me respondeu que “não estava dando certo”, discorrendo sobre problemas como “brigamos por causa da louça na pia”, “não tenho mais tempo para sair com meus amigos” e “acho que ainda tenho muito para curtir”. Me segurei para não dar um safanão na cabeça dele. Aos 34 anos ele falava como um garoto mimado de 16. Tentava explicar isso para ele, mas era como conversar com a parede.
Agora foi a vez de uma amiga minha, com seus quase 30 anos, que me disse que iria pedir demissão pois fora muito desrespeitada no trabalho. Como sou advogada trabalhista, logo me assustei, imaginando uma situação de assédio moral ou sexual. Foi quando ela explicou: meu chefe fez um comentário extremamente grosseiro no meu facebook. Suspirei e perguntei o que era, exatamente. Ela disse que postou uma foto na praia, num fim de tarde de quarta-feira, depois do expediente, e o chefe comentou “Espero que não esqueça que tem um prazo para me entregar amanhã cedo”. E isso foi suficiente para ela se sentir mal a ponto de querer pedir demissão de um bom emprego.
Eu não sei bem o que acontece com a minha geração. O fato de termos sido criados com cuidado e afeto pelos nossos pais, começou a confundir-se com uma espécie de sensação de que todos devem nos tratar como eles nos trataram. O chefe, o colega, o marido, a mulher, os amigos, ninguém pode nos tratar de igual para igual e muito menos numa hierarquia descendente. Se não for tratado a pão de ló, este jovem adulto surta, se julga injustiçado e vai embora.
Acho que o mundo evoluiu e as situações nas quais se tratava alguém com desrespeito são cada vez menos toleráveis, o que é ótimo. Também é ótimo o fato de sermos uma geração que busca felicidade e não apenas estabilidade financeira. É bom termos a coragem de mudar de carreira, de recomeçar, de priorizar as viagens e não a casa própria.
Mas nada disso justifica que a minha geração tenha comportamentos tão egoístas, agindo como verdadeiras crianças mimadas. E o grande perigo é que essas crianças mimadas têm belos diplomas e começam a ocupar cargos importantes nas empresas e no setor público. Vamos nos tornar um perigoso jardim de infância, no qual quem manda não pode ser contrariado e quem obedece também não. Isso não será uma tarefa fácil.
Originalmente Site Observador

sábado, 19 de agosto de 2017

A grande guerra das vítimas

Depois que inventaram o neologismo verbal "vitimizar", parece que acabaram as vítimas. Ninguém é mais vítima. É feio ser vítima. É uma verdadeira desonra reconhecer-se vítima. É quase uma ofensa chamar alguém de vítima. Temos a falsa impressão de quem se diz vítima está fingindo, trapaceando ou exagerando. E não é nada disso.
Eu continuo a achar que há mais vítimas do que outra coisa neste planeta e eu sou uma delas. Somos vítimas da mentalidade vigente, do capitalismo selvagem, do comunismo delirante, dos códigos profundamente injustos, das injunções religiosas, dos preconceitos desenfreados, da hipocrisia geral, da insanidade dos governantes, da síndrome patronal, dos fundamentalismos de toda a sorte, da violência humana, da falta de reconhecimento, da chantagem emocional, da ganância da espécie, do feminismo xiita, do American way of life, do politicamente correto, da arrogância coletiva, da corrupção endêmica..... Não acabaria hoje esta lista.
Enquanto não nos considerarmos vítimas, nunca poderemos combater os nossos verdadeiros algozes. Se você "está se vitimizando" logo você não é vítima e se você não é vítima, nunca combaterá os verdadeiros verdugos.
O que eu mais vejo são vítimas brigando com outras vítimas por não se saberem vítimas e por não conseguirem localizar os verdadeiros culpados. Aliás, por conta da associação que é feita da "culpa" com a religião, ninguém é mais culpado. Preferem usar eufemismos do tipo "responsável."
É uma lástima ver as pobres vítimas combaterem outras vítimas. Não conseguem eliminar as vítimas e muito menos os facínoras. Se acabássemos com esses sofismas e nos uníssemos como vítimas que somos, as coisas mudariam muito.

sábado, 5 de agosto de 2017

Intrusos no paraíso

Amargo o deleite de não ser popular. Tenho o péssimo costume de só dizer  o que é essencial, metafísico e profundo. Não conseguiria ser frívolo por mais que me esforçasse.
A cada verdade objetiva que digo, é um seguidor a menos. Fico feliz em não ser seguido por gente que não fala a minha língua.
Ia escrever um longo texto em prosa poética sobre este planeta maravilhoso que adoro e sobre os intrusos nocivos que somos todos nós, e contra os quais tenho muitas reservas, mas não foi preciso, CIORAN já disse tudo. Obrigado Cioran. 

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Ecos da savana

Não se consegue reverter facilmente um paradigma atávico. E o paradigma que tem milhões de anos é o seguinte:
- Quando você está em grupo, está bem. Quando está só, você está mal.
Até se alardeia a ideia segundo a qual a solidão é uma penitência e um castigo. As pessoas incorporaram essa percepção ao longo de milênios e ela está exarada no A.D.N. como uma mensagem indelével.
Está mais do que na hora de rever esse equívoco essencial.
Eu não estou mais nas savanas e Darwin é quase tão confiável quanto Adão no Jardim do Éden. O grupo não me protege mais como outrora, muito pelo contrário, o grupo me enfraquece e me maltrata. O grupo me subestima e me despreza  se eu não fizer exatamente o que ele determina. O grupo é despótico e deletério.
Quando eu estou só, posso estar muitíssimo bem e quando estou acompanhado posso estar preso  a uma terrível armadilha; a armadilha de que eu sou forçosamente social e gregário.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A mutação antropológica

Franco Berardi, em entrevista a Juan Íñigo Ibánez (Outras Palavras)
Neoliberalismo, assexualidade e desejo de morte. Filósofo italiano aponta: obsessão pelo sucesso individual e troca dos contatos corpóreos pelos digitais podem realizar distopia da humanidade insensível, para a qual já alertava Pasolini.
Uma das metáforas mais potentes – e de maior ressonância até nossos dias – no imaginário de Pier Paolo Pasolini é a de “mutação antropológica”. Trata-se de uma expressão que o cineasta, escritor e poeta italiano utilizava para ilustrar os efeitos psicossociais produzidos pela transição de uma economia de origem agrária e industrial para outra, de corte capitalista e transnacional.
Durante os anos 1970, Pasolini identificou, em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas, uma verdadeira transmutação nas sensibilidades de amplos setores da sociedade italiana, em consequência do “novo fascismo” imposto pela globalização. Acreditava que esse processo estava criando – fundamentalmente por meio do influxo semiótico da publicidade e da televisão – uma nova “espécie” de jovens burgueses, que chamou de “os sem futuro”: jovens com uma acentuada “tendência à infelicidade”, com pouca ou nenhuma raiz cultural ou territorial, e que estavam assimilando, sem muita distinção de classe, os valores, a estética e o estilo de vida promovidos pelos novos “tempos do consumo”.
Quarenta anos depois, outro inquieto intelectual de Bolonha – o filósofo e teórico dos meios de comunicação Franco “Bifo” Berardi – acha que o sombrio diagnóstico de Pasolini tornou-se profético, diante da situação de “precariedade existencial” e aumento de transtornos mentais que as mudanças neoliberais provocaram.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é hoje a segunda causa de morte entre jovens e crianças – a grande maioria do sexo masculino – entre 10 e 24 anos. Do mesmo modo, a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento suicida – será em 2020 a segunda forma de incapacidade mais recorrente no mundo.
Berardi acredita que esses dados – assim como a maioria dos atos violentos produzidos nos últimos anos, os assassinatos em massa ou os atentados suicidas radicais – estão estreitamente vinculados às condições de hipercompetição, subsalário e exclusão promovidos pelo ethos neoliberal. Sugere que ao analisar os efeitos que a economia de mercado tem em nossas vidas, devemos também incorporar um elemento novo e transcendente: o modo como os fluxos informativos acelerados a que estamos expostos por meio das “novas tecnologias” influem em nossa sensibilidade e processos cognitivos.
Esclarecimento: Berardi não é nenhum tecnófobo ou romântico dos tempos do capitalismo pré-industrial. Compreende – e utilizou a seu favor – os avanços que a tecnologia introduz em nossas vidas.
Desde o final dos anos 1960, liderou diversos projetos de comunicação alternativa, tais como a revista cultural A/traverso, a Rádio Alice (uma das primeiras emissoras livres da Europa), a TV Orfeu (a primeira televisão comunitária da Itália). Participou de programas educativos da Rádio e Televisão Italiana (RAI) ligados ao funcionamento e efeitos das novas tecnologias. Além disso, “Bifo” foi um observador atento de fenômenos contraculturais como o ciberpunk, ou as possibilidades futuras de governos tecnofascistas.
Sua carreira foi fortemente marcada pelo compromisso político. Foi membro ativo – desde a Universidade de Bolonha, onde graduou-se em Estética – da revolta de Maio de 68. No início dos anos 70, esteve vinculado ao movimento de esquerda extraparlamentar “Poder Operário”. Posteriormente – no começo dos 80, durante seu exílio na França – frequentou Michel Foucault e trabalhou junto com Félix Guattari no campo disciplinar então nascente da esquisoanálise. Berardi é autor de mais de vinte livros, entre os quais destacam-se El Alma del Trabajo: desde lá alienación a la autonomia (A alma do trabalho: da alienação à autonomia), Generación post-alfa. Patologías e imaginarios en el semiocapitalismo (Geração pós-alfa. Patologias e imaginários no semiocapitalismo), Héroes: asesinato de masa y suicidio (Heróis: assassinato de massa e suicídio) e Fenomenología del fin (Fenomenologia do fim).
Originalmente em "Insurgência"

sábado, 22 de julho de 2017

Pascal e as novas tecnologias

Primeiro, vamos entender o que é "Divertissement", "Divertimento" segundo Blaise Pascal. Divertir-se, hoje é distrair-se, espairecer, deleitar-se, desentediar-se, etc.
Antes do século XVII, a palavra conforme a sua etimologia latina, (divertere) significava "ação de desviar de" por exemplo desviar um bem de um inventário. Pascal constrói a partir da etimologia uma categoria moral. O "Divertimento" é uma prática de esquiva, típica da existência humana. Trata-se  de não pensar em nada que nos aflija e que nos desvie da realidade desagradável. Esta realidade desagradável não é um mal circunstancial, por exemplo um luto ou um fracasso sentimental ou profissional; é uma infelicidade constitutiva de nossa existência. Nossa condição é a de um ser fraco, mortal, exposto à doença, à solidão e ainda por cima privado do único ser capaz de solucionar todo este imbróglio:deus.
Considerando que os homens não podem curar a morte, a miséria e a ignorância, não pensar nesta situação é a solução da grande maioria.
Nada é mais insuportável ao homem que ficar em pleno estado  de repouso, sem paixões, sem atividades, sem divertimento. Em repouso, (en repos) ele sente o seu  nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua impotência e o seu vazio. 
É neste contexto, que as novas tecnologias se prestam a tornar a fuga muito mais possível e muito bem sucedida. Acho que as novas tecnologias não foram apenas criadas para facilitar relações, difundir informações e fomentar intercâmbios. A principal função das redes sociais, internet e etc, é promover de maneira muito eficaz a fuga de si próprio e  a não-reflexão. Aliás, nunca se viveu uma época tão alienante, superficial e anti-introspectiva.  

A Miséria do Divertimento

Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto menos divertido, como os Santos e Deus. - Sim; mas não sendo feliz pode animar-se pelo divertimento? - Não; porque vem doutro sítio e de fora; e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis.
(...) A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.
Blaise Pascal, in "Pensamentos"

quarta-feira, 19 de julho de 2017

A solidão não tem solução

-Um cachorrinho resolveria a sua solidão?
- Não
- Um gatinho seria a solução para a sua solidão?
- Não
- Uma família elimina a sua solidão?
- Não
- Um namoro acaba com a sua solidão?
- Também não
- Um trabalho atenua a sua solidão?
- Absolutamente, não
- Viajar para Paris acaba com a sua solidão?
- Non
A solidão é intrínseca e inexorável. A solidão não tem solução, a solidão é a solução.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

A insanidade segundo Nietzsche

Confirmação e denúncia

Existe uma nuvem de insanidade que cobre todo o planeta. Por vezes, é uma cobertura mista de insanidade e perplexidade. Há alguma coisa muita errada com a espécie humana e ninguém diz nada.
Se você confirmar a insanidade reinante, você é um cara legal e todo mundo diz que você é muito bem educado e todo mundo te adora. O preço da popularidade é módico: confirmar a frivolidade, a mediocridade e a loucura geral.
As pessoas se agarram às próprias máscaras, porque sem elas, não sobra quase nada. Em geral, as pessoas são as próprias máscaras. Desmascará-las é ofendê-las mortalmente; é confrontá-las com o nada e com o vazio. Por isso, é muito fácil fazer inimigos.
Se você repete como um credo as histórias puídas e mentirosas contadas ao longo de gerações, você é bacana. Se você confirma ainda que não concorde, por pura covardia, você até tem a impressão de ser amado pelo grupo. Acontece que o grupo não ama ninguém. Você está iludido e enganado.
Agora, se você denuncia a macacada geral, o teatro a céu aberto, o hospício consentido, a estupidez globalizada, o descalabro metafísico da condição humana, o demônio que mora nos seres humanos, as injustiças banalizadas e o circo institucional, você é do mal. São muito poucos os que te apoiam. Quase ninguém tem coragem de te seguir embora saibam no fundo dos seus íntimos  insondáveis e confusos que você vê, enxerga e se limita ao que realmente tem importância. Todo o resto é para enfrentar o tédio e passar o tempo.

sábado, 15 de julho de 2017

O fundamentalismo egoico

Eu sou do tempo dos egoístas onde até se consentia um certo egocentrismo como característica de personalidade.
Hoje, os egos extrapolaram todas as dimensões e se tornaram obsessão, histeria e fanatismo. Só se fala em amor próprio, autoestima e autoajuda. A egolatria chegou ao seu paroxismo.
Hoje, as pessoas estão doentes de si mesmas. Os descalabros que vemos à nossa volta são a consequência inequívoca de íntimos enfermos. Redefiniu-se o conceito de grupo e o que impera é uma geografia bizarra onde abundam ilhotas tolas. O arquipélago se masturba e não dialoga mais. Não há mais continentes. Contentamo-nos com algumas penínsulas heroicas e o resto é mar.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Amor de cão

PET LOVE
O amor humano que sempre foi um sentimento raríssimo, parece que está em franca extinção. O homem não é apenas capaz de extinguir as espécies animais e vegetais que povoam este belíssimo planeta, ele também é muito competente para destruir o que é bom e sublime. 
Nunca a indústria dos pets arrecadou tantos lucros. Fecham-se livrarias e abrem-se academias de musculação e pet shops. A descrença no ser humano, ainda que não afirmada - vivemos uma época do tácito em que nada se pode dizer, mas quem for minimamente perspicaz pode compreender o que se passa - é gritante e extremamente preocupante.
Nunca vi tanta gente passeando cachorro e nunca vi tanta gente falando português com cachorro. Acho que vou lançar um curso de português para cachorros e vou enriquecer.
Eu adoro cachorros. Amo toda a natureza não humana, com todos os seus animais ditos irracionais e com toda a sua vegetação desprezada , mas não concebo esta substituição estratégica de seres humanos por cachorros.
O inquestionável afeto dos cachorros está muito longe do que ambicionamos como humanos. "Não tem tu, vai tu mesmo".
A carência afetiva que nos caracteriza teve que manobrar para nos livrar da sensação insuportável de solidão e desamparo. E ainda bem que existem os cachorros para nos salvar um pouco do abandono e da desilusão.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Nada de muito novo sob o sol

O facebook não criou um novo comportamento, apenas forneceu as ferramentas ideais para que um comportamento humano milenar se tornasse mais visível e patológico.
O narcisismo e  o exibicionismo não datam de hoje. A fogueira de vaidades sempre ardeu no ventre dos séculos. A  competição compulsiva e irracional sempre nos caracterizou. A busca incoercível pela aprovação do bando, ainda não nos abandonou. 
Na luta entre a sanidade e a loucura, nunca prevaleceu a sanidade.
Então, assistimos ao muito velho orquestrado pelas novas tecnologias. Desgraçadamente, na essência, o ser humano é o mesmo desde Abraão e Isaque.

domingo, 11 de junho de 2017

Trabalhar até morrer

Michiyo Nishigaki encheu-se de orgulho quando seu único filho, Naoya, conseguiu um emprego em uma grande empresa de telecomunicações japonesa, assim que concluiu a universidade.

Naoya adorava computadores, e o novo emprego parecia ser uma ótima oportunidade profissional no competitivo ambiente corporativo japonês.
Dois anos depois, porém, a mãe começou a notar problemas."Ele me dizia que estava ocupado, mas que estava bem", relembra Michiyo."
Até que ele veio para casa para comparecer ao velório do avô e não conseguia sair da cama. Ele me dizia: 'Me deixe dormir um pouco. Não consigo levantar. Desculpe, mãe, mas me deixe dormir", acrescenta.
Mais tarde, ela soube por intermédio de colegas que o filho estava trabalhando dia e noite.
"Em geral, ele trabalhava até o horário do último trem, mas se perdesse esse acabava dormindo no escritório", conta a mãe. "Em casos extremos, trabalhava a noite toda até 22h do dia seguinte, totalizando 37 horas de trabalho."
Naoya morreu aos 27 anos, de overdose de medicamentos. Seu caso foi oficialmente considerado um de "karoshi" - termo japonês para descrever a morte por excesso de trabalho. 
O Japão tem tradicionalmente uma das jornadas laborais mais longas do mundo, e o fenômeno não é novo - o "karoshi" começou a ser identificado nos anos 1960. Mas casos recentes têm colocado o tema na pauta de debates no país. 
Jornada 
No Natal de 2015, Matsuri Takahashi, funcionária da agência de publicidade Dentsu, cometeu suicídio aos 24 anos. 
Logo veio à tona a informação de que ela estava em estado de privação de sono e havia acumulado mais de 100 horas extras nos meses que antecederam sua morte. 
Não é algo incomum, sobretudo entre jovens recém-iniciados no mercado de trabalho, explica Makoto Iwahashi, funcionário da Posse, organização que dá ajuda psicológica telefônica para essas pessoas. 
Ele diz que a maioria dos telefonemas que recebe consiste em reclamações quanto a longas jornadas de trabalho. 
"É triste, porque esses jovens profissionais acham que não têm alternativa", diz Iwahashi à BBC. 
"Ou você pede demissão ou trabalha 100 horas. E se você pede demissão, você não consegue viver", acrescenta. 
Para Iwahashi, a redução da estabilidade profissional aumenta a insegurança dos trabalhadores. 
"Havia karoshi nos anos 1960 e 70, (mas) a diferença é que, ainda que eles tivessem que trabalhar por muitas horas (naquela época), eles tinham emprego garantido para a vida. Não é mais o caso." 
Cultura da hora extra 
Dados oficiais apontam que há centenas de casos anuais de "karoshi" no país, incluindo enfartos, derrames e suicídios decorrentes da estafa profissional extrema. Mas ativistas acreditam que o número real seja muito mais alto. 
Quase um quarto das empresas japonesas tem empregados que excedem 80 horas extras semanais por mês - muitas vezes sem ganhos extras - diz um estudo recente. 
E, em 12% das empresas, os funcionários fazem mais de 100 horas extras por mês. 
São números significativos: é a partir de 80 horas extras no mês que se nota um aumento da possibilidade de morte do funcionário. 
O governo japonês está sob crescente pressão para conter o problema, mas se vê diante de uma tradição corporativa antiga - quem vai embora do escritório antes que seus colegas ou seu chefe passa a ser mal visto. 
No início deste ano, o governo lançou as "sextas premium", estimulando as empresas a permitir que seus funcionários saiam mais cedo - às 15h - na última sexta-feira do mês. Também incentivam os funcionários a tirar mais dias de folga. 
Os trabalhadores japoneses têm direito a 20 dias de férias por ano, mas atualmente 35% deles não usam nenhum dia sequer. 
Luzes apagadas 
Nos escritórios do governo distrital de Toshima, no centro de Tóquio, recorreu-se à ideia de apagar as luzes às 19h, para forçar os funcionários a irem embora na hora certa. 
"Queríamos fazer algo de visibilidade", diz o gerente do escritório, Hitoshi Ueno. "Não se trata de apenas reduzir a jornada. Queremos que as pessoas sejam mais eficientes e produtivas, para que todos possam resguardar e aproveitar seu tempo livre. Queremos mudar o ambiente profissional em geral." 
O foco na eficiência pode fazer sentido: enquanto o país tem uma das jornadas laborais mais longas do mundo, é o menos produtivo entre os países do G7, grupo das nações mais ricas. 
Mas críticos dizem que tais medidas são muito fragmentadas e incapazes de lidar com o problema central: que jovens profissionais estão morrendo por estarem trabalhando muito duro e por muitas horas. 
Para alguns, a solução passa em estipular um limite legal às horas extras. 
No início deste ano, o governo propôs restringir as horas extras a 60 horas mensais, permitindo que "em períodos de maior demanda" esse limite subisse a 100 - já na zona de perigo de "karoshi". 
Muitos acusam o governo de priorizar interesses econômicos ao bem-estar dos trabalhadores. 
"O povo japonês conta com o governo, mas está sendo traído", diz Koji Morioka, acadêmico que estuda o fenômeno do "karochi" há 30 anos. 
Enquanto o debate avança, mais jovens têm morrido, e grupos de apoio a famílias enlutadas ganham cada vez mais membros. 
Michiyo Nishigaki, mãe de Naoya, diz que seu país está "matando" sua mão de obra, em vez de valorizá-la. 
"As empresas focam apenas nos lucros de curto prazo", opina.
"Meu filho e outros jovens não odeiam trabalhar. São capazes e querem se sair bem. Deem a eles a oportunidade de trabalhar sem uma longa jornada ou problemas de saúde, e eles se tornarão um privilégio para o país", conclui.
BBC-Brasil

sábado, 27 de maio de 2017

A ciência do palavrão


Os xingamentos mostram a evolução da linguagem, das sociedades e, de quebra, ajudam a desvendar o cérebro

Por que diabos “merda” é palavrão? Aliás, por que a palavra “diabos”, indizível décadas atrás, deixou de ser um? Outra: você já deve ter tropeçado numa pedra e, para revidar, xingou-a de algo como “filha-da -puta”, mesmo sabendo que a dita nem mãe tem.
Pois é: há mais mistérios no universo dos palavrões do que o senso comum imagina. Mas a ciência ajuda a desvendá-los. Pesquisas recentes mostram que as palavras sujas nascem em um mundo à parte dentro do cérebro. Enquanto a linguagem comum e o pensamento consciente ficam a cargo da parte mais sofisticada da massa cinzenta, o neocórtex, os palavrões “moram” nos porões da cabeça. Mais exatamente no sistema límbico. É o fundo do cérebro, a parte que controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva: se o nosso neocórtex é mais avantajado que o dos outros mamíferos, o sistema límbico é bem parecido. Nossa parte animal fica lá.
E sai de vez em quando, na forma de palavrões. A medicina ajuda a entender isso. Veja o caso da síndrome de Tourette. Essa doença acomete pessoas que sofreram danos no gânglio basal, a parte do cérebro cuja função é manter o sistema límbico comportado. Elas passam a ter tiques nervosos o tempo todo. E, às vezes, mais do que isso. De 10 a 20% dos pacientes ficam com uma característica inusitada: não param de falar palavrão. Isso mostra que, sem o gânglio basal para tomar conta, o sistema límbico se solta todo. E os palavrões saem como se fossem tiques nervosos na forma de palavras.
Mas você não precisa ter lesão nenhuma para se descontrolar de vez em quando, claro. Como dissemos, basta tropeçar numa pedra para que ela corra o sério risco de ouvir um desaforo. Se dependesse do pensamento consciente, ninguém nunca ofenderia uma coisa inanimada. Mas o sistema límbico é burro. Burro e sincero. Justamente por não pensar, quando essa parte animal do cérebro “fala”, ela consegue traduzir certas emoções com uma intensidade inigualável. Os palavrões, por esse ponto de vista, são poesia no sentido mais profundo da palavra. Duvida?
Então pense em uma palavra forte. “Paixão”, por exemplo. Ela tem substância, sim, mas está longe de transmitir toda a carga emocional da paixão propriamente dita. Mas com um grande e gordo “puta que o pariu” a história é outra. Ele vai direto ao ponto, transmite a emoção do sistema límbico de quem fala direto para o de quem ouve. Por isso mesmo, alguns pesquisadores consideram o palavrão até mais sofisticado que a linguagem comum.
É o que pensa o psicólogo cognitivo Steven Pinker, da Universidade Harvard. Em seu livro mais recente, Stuff of Thought (“Coisas do Pensamento”, inédito em português), ele escreveu: “Mais do que qualquer outra forma de linguagem, xingar recruta nossas faculdades de expressão ao máximo: o poder de combinação da sintaxe; a força evocativa da metáfora e a carga emocional das nossas atitudes, tanto as pensadas quanto impensadas”. Traduzindo: palavrões são f*.
Tão f* que nem os usamos só para xingar. Eles expressam qualquer emoção indizível, seja ruim, seja boa. Então, se um jogador de futebol grita palavrões depois de marcar um gol, ele não o faz por ser mal-educado, mas porque só uma palavra saída direto do sistema límbico consegue transmitir o que ele está sentindo. Outra prova de eficácia é que eles estreitam nossos laços sociais. Se você xingar alguém gratuitamente e o sujeito não ficar bravo, significa que ele é seu amigo. Daí que grupos de homens adoram usar cumprimentos como “Fala, cuzão!” Isso deixa claro que todos ali são íntimos. “Perceber o xingamento como agressão ou ferramenta social depende do contexto”, disse o psicólogo Timothy Jay, da Faculdade de Artes Liberais de Massachusetts, para a revista americana New Scientist. “Num vestiário masculino, por exemplo, quem não xinga é o ‘panaca’”.
Timothy Jay sabe do que está falando. É um expert em palavrões. Ele passou as últimas 3 décadas anotando as sujeiras que ouvia em lugares públicos. Juntou mais de 10 mil ocorrências. E colocou em números cientificamente rigorosos (na medida do possível) aquilo que você já sabia: “foda” e “merda” (ou “fuck” e “shit”) correspondem à metade de todos os palavrões ditos – sem contar suas variantes.
Não é à toa. Como os palavrões nascem na parte primitiva do cérebro, quase todos versam sobre as duas coisas mais básicas da existência:
Sexo e excrementos
Veja só. “Merda” é um palavrão mais ofensivo que “mijo”, por sua vez mais pesado que “cuspe”, que nem palavrão é. Se você fosse excretar alguma dessas coisas na rua, essa também seria a ordem de impacto nas outras pessoas – do mais para o menos chocante. Coincidência? “Não. Não é por acaso que as substâncias que mais dão nojo também sejam vetores de doenças. A reação de repulsa à palavra é o desejo de não tocar ou comer a coisa”, afirma o médico americano Val Curtis no livro Is Hygiene in Our Genes? (“A Higiene Está nos Nossos Genes?”, sem tradução para português).
Se é fácil entender por que excrescências são palavrões, não dá para dizer o mesmo sobre os termos ligados ao sexo. Afinal, sexo é bom, não? Não necessariamente. “Ele traz altos riscos, incluindo doenças, exploração, pedofilia e estupro. Esses males deixaram marcas nos nossos costumes e emoções”, diz Pinker. Foquemos em “estupro”. Pegar mulheres à força permitia que um macho fizesse dezenas, centenas de filhos, coisa que contou pontos no jogo da evolução. Já para as mulheres isso é o inferno. Então selecionar o pai é fundamental, e engravidar de alguém que a violentou, um baita prejuízo.
Daí foi natural que a expressão “foder alguém” virasse sinônimo de “fazer um grande mal”. Para entender isso melhor, complete a frase “João ___ Maria” para mostrar que eles transaram, usando apenas uma palavra. Quase todas as opções para preencher a lacuna são palavrões. Já os termos leves para relação sexual sempre carregam a preposição “com”: você pode dizer que João fez amor com Maria, dormiu com, fez sexo com, transou com… Todos os exemplos indicam que João e Maria participaram do sexo de igual para igual. Com os palavrões, a história é outra. Eles deixam claro: Maria está sempre numa posição inferior.
Note que a origem de “fodido” e seus equivalente não envolve o sexo apenas como uma ferramenta de submissão de homens contra mulheres. Mas de homens contra homens também. O estupro homossexual sempre foi, e segue sendo, uma forma eficaz de deixar claro num bando de machos quem é o chefe – a violência sexual dentro dos presídios está aí para provar. A coisa é tão arraigada que até uma palavra inocente hoje, como “coitado” ou “tadinho”, sua variante mais fofa, significa “aquele que sofreu o coito”.
Mas espera aí: como algo tão barra-pesada vira uma palavra até bonitinha? É o que vamos ver.
A vida e a morte de um palavrão
“Que se dane!”, “diabos” ou “vá para o inferno” já foi algo mais impactante. Claro: até décadas atrás não havia prognóstico pior que não ir para o céu quando morresse. Então, quando a idéia era insultar para valer, nada melhor que mandar alguém para o inferno. “A perda de eficácia das palavras tabus relacionadas à religião é uma óbvia conseqüência da secularização da cultura ocidental”, afirma Pinker.
Outra: quando “câncer” era sinônimo de morte, também não podia ser dita livremente. Nos obituários, a pessoa não morria de câncer, mas de “uma longa enfermidade”. Com os avanços no tratamento, a coisa mudou de figura, e câncer, apesar de ainda dar calafrios, virou uma palavra bem mais corriqueira. As doenças em geral, na verdade, passaram por um processo parecido. Em Romeu e Julieta, de Shakespeare, por exemplo, há uma passagem dizendo: “Que a peste invada as casas de ambos!” Uma baita ofensa no século 16, quando a peste bubônica ainda era uma ameaça na Europa. Mas agora, no mundo limpo e cheio de antibióticos que a gente conhece, o xingamento shakespeariano parece inócuo.
E também há o inverso: palavras normais que viram tabu. Em algum momento da história do português um sujeito chamou pênis de “pau”. E uma palavra originalmente “pura” enveredava para o mau caminho. Nada mais comum: hoje ninguém se lembra mais de “caralho” como sendo a cestinha que ficava no alto do mastro dos navios, ou “boceta” como uma caixa pequena e redonda. “A palavra vira tabu quando ganha um sentido simbólico”, afirma o etimólogo Deoníoso da Silva, da Universidade Estácio de Sá.
Mais uma mostra de como os palavrões flutuam com o espírito do tempo são as expressões que são tabu num lugar e não têm nada de mais em outro. Se você for a Portugal, vai ver que eles preferem cu e rabo para referirem-se às nádegas, e que coram quando alguém fala “broche” (o termo sujo para sexo oral).
Mas quem decide o que é palavrão e o que não é? “Isso depende dos mecanismos de conservação da língua, que são o ensino, os meios de comunicação e os dicionários. As palavras relacionadas a sexo que não são palavrões são quase todas da literatura científica, como pênis e ânus”, explica a lingüista Wânia de Aragão, da Universidade de Brasília. Não que isso impeça termos científicos de hoje, como “pedófilo”, de virar palavra suja um dia. A palavra “esquizofrênico”, por exemplo, nasceu na ciência, mas agora, com o aumento dos dignósticos de doenças mentais, caiu na boca do povo. E está virando xingamento.
Mas saber quais serão os palavrões do futuro é tão impossível quanto prever o futuro da tecnologia, da humanidade ou do Corinthians. O escritor e comediante inglês Douglas Adams, resumiu isso bem no clássico O Guia do Mochileiro das Galáxias. O livro diz que o palavrão mais sujo entre os habitantes dos outros planetas da Via Láctea é uma expressão bem conhecida dos terráqueos: “bélgica”.
Superinteressante

sábado, 20 de maio de 2017

A festa do fim do mundo

Agora que o mundo parece que acabou, comemore à sua maneira. Se você acha que o mundo não acabou, seguramente você não está neste mundo. Acorde desse mundo fictício que te inventaram. Seja mais um assassino de papai noel. Apunhale as fadas que reinam nas suas sinapses. Desperte para o  fim do que é péssimo e prepare-se  para o porvir. Vomito nas interpretações que você pode dar às minhas palavras. E aproveito o ensejo para ejacular no seu otimismo. Não nutro o entusiasmo de quem não tem coragem.
Agora que o mundo acabou alegre-se pelo recomeço. O podre não tem remédio. E quem se regozija na podridão é um  morto-vivo. Quem lambe os velhos erros é o arauto da catástrofe.
Viva o fim  do mundo! Quanto tempo esperei por este momento orgástico. Festejo o fim desta agonia em dez vezes sem juros e absorvo o impacto do fim de tudo. Aceito a morte que me redime de tantos e tantos idiotas que presidem o hospício. A certeza do fim é muito melhor que todas as ilusões dos que começam.
Ergo o meu copo de vinho barato e trinco a delícia deste chocolate amargo. Viva o fim do mundo!

sábado, 6 de maio de 2017

Ódio à primeira vista

Existem certas pessoas cujos atos, ideologia ou aspecto nos causam uma imediata rejeição, embora não as conheçamos. Nesses casos, sua simples imagem pode gerar um sentimento de repulsa que de algum modo, somos capazes de entender. Mas há ocasiões em que alguém nos cai mal e não podemos encontrar as razões. Não se trata de alguém repulsivo: certamente cairá muito bem para muitas outras pessoas − mas não para nós. Nestes casos em que o sentimento próprio não corresponde à tônica geral, pensamos: o que faz com que as pessoas nos caiam bem ou mal à primeira vista? Fala-se muito das paixões e do amor à primeira vista, mas menos do fenômeno contrário. Como se explica isso de antipatizar logo de cara com alguém.
Segundo José Manuel Sánchez Sanz, diretor do Centro de Estudos de Coaching de Madri (Espanha), essa “flechada” negativa funciona como “um mecanismo de sobrevivência que nos põe em alerta diante de circunstâncias que nosso cérebro tem catalogadas como perigosas ou ameaçadoras”. Embora existam situações ou objetos universais que geram repúdio, cada um de nós tem seu próprio catálogo pessoal de aversões mais ou menos conscientes: “O rechaço será nossa resposta corporal para situações desagradáveis ou inquietantes”. Com a sensação ruim a respeito de alguém, “procuraremos evitar um dano físico ou psicológico posterior”.
No nível fisiológico, aludindo à teoria daquele que é considerado o pai do estudo da inteligência emocional, Daniel Goleman, a reação natural de alerta surgirá na amígdala cerebelosa, “uma região do cérebro responsável, em grande medida, pelos julgamentos rápidos que emitimos a respeito das pessoas”, explica Sandra Burgos, da 30k Coaching. “Qualquer emoção que nos leve a comportamentos viscerais está sendo administrada diretamente por essa glândula, por isso a resposta automática não é racional, e sim espontânea e instintiva”.
Quem essa pessoa me lembra?
“Há pessoas que sentem antipatia pelos chefes e há
quem tenha aversão a pessoas loiras ou altas, jovens ou que sempre sorriem. A lista é infinita”, afirma Sánchez Sanz. Mas por que será que alguém sobre quem não temos nenhuma informação pode nos parecer uma ameaça? “Em muitos casos, trata-se de sinais que a outra pessoa emite e evoca em nós lembranças de experiências ou de pessoas desagradáveis com as quais tivemos contato em outro momento de nossas vidas”, explica o pesquisador. Assim, um traço facial, um cheiro, um timbre de voz ou até mesmo um tique ao falar bastaria para fazer essa glândula reagir e disparar o alerta. O percurso de vida de cada um determinaria, então, quais estereótipos lemos em uma ou outra direção.
Um dos detonantes mais claros da evocação é o cheiro. O olfato, segundo Teresa Baró, especialista em comunicação não verbal, é um dos sentidos mais desenvolvidos, mas menos levados em conta na hora de analisar sua influência em nosso comportamento: “É uma via de comunicação pela qual geramos sensações agradáveis ou desagradáveis”.
Aquilo que rejeitamos nos delata
Outro condicionante subjetivo é que as características visíveis dessa pessoa que nos cai mal sejam aquelas que rejeitamos de nós mesmos: “Boa parte do que evitamos energicamente no outro tem a ver com aspectos de nós mesmos dos quais não gostamos, embora não queiramos reconhecer”, revela Sánchez Sanz. Se isso ocorre mesmo sem que tenhamos certeza de que essas características odiadas estão presentes na outra pessoa, a explicação pode estar em um estudo da Wake Forest University, nos EUA. Segundo esse estudo, o ser humano tende a projetar nos outros alguns dos traços de sua personalidade.
Assim, da próxima vez que antipatizar com alguém à primeira vista, reflita sobre que parte de você seria bom mudar. “As pessoas com autocontrole não deixam que a amígdala cerebelosa as domine, nem diante de alguém cujos sinais corporais, verbais ou estéticos provoquem nelas uma rejeição automática.”
O que nos transmitem sem falar 
Além dos julgamentos iniciais ligados à experiência subjetiva, para alguns especialistas existem características pessoais (algumas modificáveis e outras não) que podem inclinar a balança para o rechaço ou a atração por alguém desconhecido. Autores como Paul Ekman, psicólogo pioneiro no estudo das emoções e de sua manifestação no rosto, consideram determinante a linguagem corporal: “Mesmo quando não dizemos nada verbalmente, continuamos comunicando e podemos emitir sinais não verbais que gerem rejeição em outros”, recorda Sandra Burgos. Os pesquisadores consideram que há algumas posturas que podem causar má impressão em outras pessoas. Por exemplo, “aquelas indicadoras de uma atitude distante ou pouco afável, como cruzar os braços ou as pernas em direção contrária ao lugar onde nos encontramos”, assinala a diretora da 30k Coaching. A presença de microexpressões faciais de ira ou desprezo atua como um repulsivo natural, ao contrário do que ocorre com uma expressão amável ou de amizade.
Outro elemento que se deve levar em conta é se a pessoa combina ou não com o ambiente. Para Álvaro e Víctor Gorda, diretores do centro universitário Imagen Pública, no México, “uma imagem que destoe da que se espera de nós em uma determinada situação poderia causar rejeição por violar a norma implícita do evento ou situação”.
MSN -  Adaptação

sábado, 1 de abril de 2017

A síntese de Bauman


O sociólogo polonês Zygmunt Bauman declara que vivemos em um tempo que escorre pelas mãos, um tempo líquido em que nada é para persistir. Não há nada tão intenso que consiga permanecer e se tornar verdadeiramente necessário. Tudo é transitório. Não há a observação pausada daquilo que experimentamos, é preciso fotografar, filmar, comentar, curtir, mostrar, comprar e comparar.
O desejo habita a ansiedade e se perde no consumismo imediato. A sociedade está marcada pela ansiedade, reina uma inabilidade de experimentar profundamente o que nos chega, o que importa é poder descrever aos demais o que se está fazendo.
Em tempos de Facebook e Twitter não há desagrados, se não gosto de uma declaração ou um pensamento, deleto, desconecto, bloqueio. Perde-se a profundidade das relações; perde-se a conversa que possibilita a harmonia e também o destoar. Nas relações virtuais não existem discussões que terminem em abraços vivos, as discussões são mudas, distantes. As relações começam ou terminam sem contato algum. Analisamos o outro por suas fotos e frases de efeito. Não existe a troca vivida.
Ao mesmo tempo em que experimentamos um isolamento protetor, vivenciamos uma absoluta exposição. Não há o privado, tudo é desvendado: o que se come, o que se compra; o que nos atormenta e o que nos alegra.
O amor é mais falado do que vivido. Vivemos um tempo de secreta angústia. Filosoficamente a angústia é o sentimento do nada. O corpo se inquieta e a alma sufoca. Há uma vertigem permeando as relações, tudo se torna vacilante, tudo pode ser deletado: o amor e os amigos.
“Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo”. Zygmunt Bauman

Portal Raízes