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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

A estranha geração dos adultos mimados


O fato de termos sido criados com cuidado e afeto pelos nossos pais, começou a confundir-se com uma espécie de sensação de que todos devem nos tratar como eles nos trataram.
Tudo começou com uma colega minha de estágio, há mais de 10 anos, que pediu demissão por acreditar que “não foi criada para ficar carregando papel”. Sim, carregar papel fazia parte das nossas tarefas, enquanto ajudávamos o juiz e os demais servidores públicos com os processos do Tribunal. Acompanhávamos audiências, ajudávamos com os despachos e, sim, carregávamos papéis entre o segundo e o quarto andar do edifício.
Os pais da menina convenceram-na de que ela era boa demais para aquilo. Não importava que nós fôssemos meninas de 19 anos, no segundo ano da faculdade, sem qualquer experiência, buscando aprender alguma coisa e ganhar uns poucos reais para comer hamburguer nos finais de semana. Ela, que tinha a certeza de ser uma joia rara, foi embora, deixando sua vaga vazia no meio do semestre e sobrecarregando todos os demais, inclusive eu, sem nem se constranger com isso.
O tempo passou e, quando eu já era advogada, tive um estagiário de vinte e poucos anos que, três meses depois de ser contratado, solicitou dois meses de férias. Eu nem sequer entendi o pedido. Perguntei se ele estava doente ou se havia algum outro problema grave. Ele me respondeu que não, que simplesmente tinha decidido ir para a Califórnia passar dezembro e janeiro, pois a irmã estava morando lá e ele tinha casa de graça. Eu mal podia acreditar no que estava ouvindo. Deixei ele ir e pedi que não voltasse mais.
Alguns anos depois, ouvi um grande amigo me dizer que iria divorciar-se. Ele havia casado fazia menos de um ano, com direito a uma imensa festa, custeada pelos pais dos noivos. Mais uma vez perguntei se algo de grave tinha ocorrido. Ele me respondeu que “não estava dando certo”, discorrendo sobre problemas como “brigamos por causa da louça na pia”, “não tenho mais tempo para sair com meus amigos” e “acho que ainda tenho muito para curtir”. Me segurei para não dar um safanão na cabeça dele. Aos 34 anos ele falava como um garoto mimado de 16. Tentava explicar isso para ele, mas era como conversar com a parede.
Agora foi a vez de uma amiga minha, com seus quase 30 anos, que me disse que iria pedir demissão pois fora muito desrespeitada no trabalho. Como sou advogada trabalhista, logo me assustei, imaginando uma situação de assédio moral ou sexual. Foi quando ela explicou: meu chefe fez um comentário extremamente grosseiro no meu facebook. Suspirei e perguntei o que era, exatamente. Ela disse que postou uma foto na praia, num fim de tarde de quarta-feira, depois do expediente, e o chefe comentou “Espero que não esqueça que tem um prazo para me entregar amanhã cedo”. E isso foi suficiente para ela se sentir mal a ponto de querer pedir demissão de um bom emprego.
Eu não sei bem o que acontece com a minha geração. O fato de termos sido criados com cuidado e afeto pelos nossos pais, começou a confundir-se com uma espécie de sensação de que todos devem nos tratar como eles nos trataram. O chefe, o colega, o marido, a mulher, os amigos, ninguém pode nos tratar de igual para igual e muito menos numa hierarquia descendente. Se não for tratado a pão de ló, este jovem adulto surta, se julga injustiçado e vai embora.
Acho que o mundo evoluiu e as situações nas quais se tratava alguém com desrespeito são cada vez menos toleráveis, o que é ótimo. Também é ótimo o fato de sermos uma geração que busca felicidade e não apenas estabilidade financeira. É bom termos a coragem de mudar de carreira, de recomeçar, de priorizar as viagens e não a casa própria.
Mas nada disso justifica que a minha geração tenha comportamentos tão egoístas, agindo como verdadeiras crianças mimadas. E o grande perigo é que essas crianças mimadas têm belos diplomas e começam a ocupar cargos importantes nas empresas e no setor público. Vamos nos tornar um perigoso jardim de infância, no qual quem manda não pode ser contrariado e quem obedece também não. Isso não será uma tarefa fácil.
Originalmente Site Observador

sábado, 19 de agosto de 2017

A grande guerra das vítimas

Depois que inventaram o neologismo verbal "vitimizar", parece que acabaram as vítimas. Ninguém é mais vítima. É feio ser vítima. É uma verdadeira desonra reconhecer-se vítima. É quase uma ofensa chamar alguém de vítima. Temos a falsa impressão de quem se diz vítima está fingindo, trapaceando ou exagerando. E não é nada disso.
Eu continuo a achar que há mais vítimas do que outra coisa neste planeta e eu sou uma delas. Somos vítimas da mentalidade vigente, do capitalismo selvagem, do comunismo delirante, dos códigos profundamente injustos, das injunções religiosas, dos preconceitos desenfreados, da hipocrisia geral, da insanidade dos governantes, da síndrome patronal, dos fundamentalismos de toda a sorte, da violência humana, da falta de reconhecimento, da chantagem emocional, da ganância da espécie, do feminismo xiita, do American way of life, do politicamente correto, da arrogância coletiva, da corrupção endêmica..... Não acabaria hoje esta lista.
Enquanto não nos considerarmos vítimas, nunca poderemos combater os nossos verdadeiros algozes. Se você "está se vitimizando" logo você não é vítima e se você não é vítima, nunca combaterá os verdadeiros verdugos.
O que eu mais vejo são vítimas brigando com outras vítimas por não se saberem vítimas e por não conseguirem localizar os verdadeiros culpados. Aliás, por conta da associação que é feita da "culpa" com a religião, ninguém é mais culpado. Preferem usar eufemismos do tipo "responsável."
É uma lástima ver as pobres vítimas combaterem outras vítimas. Não conseguem eliminar as vítimas e muito menos os facínoras. Se acabássemos com esses sofismas e nos uníssemos como vítimas que somos, as coisas mudariam muito.

sábado, 5 de agosto de 2017

Intrusos no paraíso

Amargo o deleite de não ser popular. Tenho o péssimo costume de só dizer  o que é essencial, metafísico e profundo. Não conseguiria ser frívolo por mais que me esforçasse.
A cada verdade objetiva que digo, é um seguidor a menos. Fico feliz em não ser seguido por gente que não fala a minha língua.
Ia escrever um longo texto em prosa poética sobre este planeta maravilhoso que adoro e sobre os intrusos nocivos que somos todos nós, e contra os quais tenho muitas reservas, mas não foi preciso, CIORAN já disse tudo. Obrigado Cioran.