Os xingamentos mostram a evolução da linguagem, das sociedades e, de quebra, ajudam a desvendar o cérebro
Por que diabos “merda” é palavrão? Aliás, por que a palavra “diabos”,
indizível décadas atrás, deixou de ser um? Outra: você já deve ter tropeçado
numa pedra e, para revidar, xingou-a de algo como “filha-da -puta”, mesmo
sabendo que a dita nem mãe tem.
Pois é: há mais mistérios no universo dos palavrões do que o senso comum
imagina. Mas a ciência ajuda a desvendá-los. Pesquisas recentes mostram que as
palavras sujas nascem em um mundo à parte dentro do cérebro. Enquanto a
linguagem comum e o pensamento consciente ficam a cargo da parte mais
sofisticada da massa cinzenta, o neocórtex, os palavrões “moram” nos porões da
cabeça. Mais exatamente no sistema límbico. É o fundo do cérebro, a parte que
controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva: se o nosso neocórtex é
mais avantajado que o dos outros mamíferos, o sistema límbico é bem parecido.
Nossa parte animal fica lá.
E sai de vez em quando, na forma de palavrões. A medicina ajuda a entender
isso. Veja o caso da síndrome de Tourette. Essa doença acomete pessoas que
sofreram danos no gânglio basal, a parte do cérebro cuja função é manter o
sistema límbico comportado. Elas passam a ter tiques nervosos o tempo todo. E,
às vezes, mais do que isso. De 10 a 20% dos pacientes ficam com uma
característica inusitada: não param de falar palavrão. Isso mostra que, sem o
gânglio basal para tomar conta, o sistema límbico se solta todo. E os palavrões
saem como se fossem tiques nervosos na forma de palavras.
Mas você não precisa ter lesão nenhuma para se descontrolar de vez em
quando, claro. Como dissemos, basta tropeçar numa pedra para que ela corra o
sério risco de ouvir um desaforo. Se dependesse do pensamento consciente,
ninguém nunca ofenderia uma coisa inanimada. Mas o sistema límbico é burro.
Burro e sincero. Justamente por não pensar, quando essa parte animal do cérebro
“fala”, ela consegue traduzir certas emoções com uma intensidade inigualável.
Os palavrões, por esse ponto de vista, são poesia no sentido mais profundo da
palavra. Duvida?
Então pense em uma palavra forte. “Paixão”, por exemplo. Ela tem substância,
sim, mas está longe de transmitir toda a carga emocional da paixão propriamente
dita. Mas com um grande e gordo “puta que o pariu” a história é outra. Ele vai
direto ao ponto, transmite a emoção do sistema límbico de quem fala direto para
o de quem ouve. Por isso mesmo, alguns pesquisadores consideram o palavrão até
mais sofisticado que a linguagem comum.
É o que pensa o psicólogo cognitivo Steven Pinker, da Universidade Harvard.
Em seu livro mais recente, Stuff of Thought (“Coisas do Pensamento”,
inédito em português), ele escreveu: “Mais do que qualquer outra forma de
linguagem, xingar recruta nossas faculdades de expressão ao máximo: o poder de
combinação da sintaxe; a força evocativa da metáfora e a carga emocional das
nossas atitudes, tanto as pensadas quanto impensadas”. Traduzindo: palavrões
são f*.
Tão f* que nem os usamos só para xingar. Eles expressam qualquer emoção
indizível, seja ruim, seja boa. Então, se um jogador de futebol grita palavrões
depois de marcar um gol, ele não o faz por ser mal-educado, mas porque só uma
palavra saída direto do sistema límbico consegue transmitir o que ele está
sentindo. Outra prova de eficácia é que eles estreitam nossos laços sociais. Se
você xingar alguém gratuitamente e o sujeito não ficar bravo, significa que ele
é seu amigo. Daí que grupos de homens adoram usar cumprimentos como “Fala,
cuzão!” Isso deixa claro que todos ali são íntimos. “Perceber o xingamento como
agressão ou ferramenta social depende do contexto”, disse o psicólogo Timothy
Jay, da Faculdade de Artes Liberais de Massachusetts, para a revista americana
New Scientist. “Num vestiário masculino, por exemplo, quem não xinga é o
‘panaca’”.
Timothy Jay sabe do que está falando. É um expert em palavrões. Ele passou
as últimas 3 décadas anotando as sujeiras que ouvia em lugares públicos. Juntou
mais de 10 mil ocorrências. E colocou em números cientificamente rigorosos (na
medida do possível) aquilo que você já sabia: “foda” e “merda” (ou “fuck” e
“shit”) correspondem à metade de todos os palavrões ditos – sem contar suas
variantes.
Não é à toa. Como os palavrões nascem na parte primitiva do cérebro, quase
todos versam sobre as duas coisas mais básicas da existência:
Sexo e excrementos
Veja só. “Merda” é um palavrão mais ofensivo que “mijo”, por sua vez mais
pesado que “cuspe”, que nem palavrão é. Se você fosse excretar alguma dessas
coisas na rua, essa também seria a ordem de impacto nas outras pessoas – do
mais para o menos chocante. Coincidência? “Não. Não é por acaso que as
substâncias que mais dão nojo também sejam vetores de doenças. A reação de
repulsa à palavra é o desejo de não tocar ou comer a coisa”, afirma o médico
americano Val Curtis no livro Is Hygiene in Our Genes? (“A Higiene
Está nos Nossos Genes?”, sem tradução para português).
Se é fácil entender por que excrescências são palavrões, não dá para dizer o
mesmo sobre os termos ligados ao sexo. Afinal, sexo é bom, não? Não
necessariamente. “Ele traz altos riscos, incluindo doenças, exploração,
pedofilia e estupro. Esses males deixaram marcas nos nossos costumes e
emoções”, diz Pinker. Foquemos em “estupro”. Pegar mulheres à força permitia
que um macho fizesse dezenas, centenas de filhos, coisa que contou pontos no
jogo da evolução. Já para as mulheres isso é o inferno. Então selecionar o pai
é fundamental, e engravidar de alguém que a violentou, um baita prejuízo.
Daí foi natural que a expressão “foder alguém” virasse sinônimo de “fazer um
grande mal”. Para entender isso melhor, complete a frase “João ___ Maria” para
mostrar que eles transaram, usando apenas uma palavra. Quase todas as opções
para preencher a lacuna são palavrões. Já os termos leves para relação sexual
sempre carregam a preposição “com”: você pode dizer que João fez amor com
Maria, dormiu com, fez sexo com, transou com… Todos os exemplos indicam que
João e Maria participaram do sexo de igual para igual. Com os palavrões, a
história é outra. Eles deixam claro: Maria está sempre numa posição inferior.
Note que a origem de “fodido” e seus equivalente não envolve o sexo apenas
como uma ferramenta de submissão de homens contra mulheres. Mas de homens
contra homens também. O estupro homossexual sempre foi, e segue sendo, uma
forma eficaz de deixar claro num bando de machos quem é o chefe – a violência
sexual dentro dos presídios está aí para provar. A coisa é tão arraigada que
até uma palavra inocente hoje, como “coitado” ou “tadinho”, sua variante mais
fofa, significa “aquele que sofreu o coito”.
Mas espera aí: como algo tão barra-pesada vira uma palavra até bonitinha? É
o que vamos ver.
A vida e a morte de um palavrão
“Que se dane!”, “diabos” ou “vá para o inferno” já foi algo mais impactante.
Claro: até décadas atrás não havia prognóstico pior que não ir para o céu
quando morresse. Então, quando a idéia era insultar para valer, nada melhor que
mandar alguém para o inferno. “A perda de eficácia das palavras tabus relacionadas
à religião é uma óbvia conseqüência da secularização da cultura ocidental”,
afirma Pinker.
Outra: quando “câncer” era sinônimo de morte, também não podia ser dita
livremente. Nos obituários, a pessoa não morria de câncer, mas de “uma longa
enfermidade”. Com os avanços no tratamento, a coisa mudou de figura, e câncer,
apesar de ainda dar calafrios, virou uma palavra bem mais corriqueira. As
doenças em geral, na verdade, passaram por um processo parecido. Em Romeu e
Julieta, de Shakespeare, por exemplo, há uma passagem dizendo: “Que a peste
invada as casas de ambos!” Uma baita ofensa no século 16, quando a peste
bubônica ainda era uma ameaça na Europa. Mas agora, no mundo limpo e cheio de
antibióticos que a gente conhece, o xingamento shakespeariano parece inócuo.
E também há o inverso: palavras normais que viram tabu. Em algum momento da
história do português um sujeito chamou pênis de “pau”. E uma palavra
originalmente “pura” enveredava para o mau caminho. Nada mais comum: hoje
ninguém se lembra mais de “caralho” como sendo a cestinha que ficava no alto do
mastro dos navios, ou “boceta” como uma caixa pequena e redonda. “A palavra
vira tabu quando ganha um sentido simbólico”, afirma o etimólogo Deoníoso da
Silva, da Universidade Estácio de Sá.
Mais uma mostra de como os palavrões flutuam com o espírito do tempo são as
expressões que são tabu num lugar e não têm nada de mais em outro. Se você for
a Portugal, vai ver que eles preferem cu e rabo para referirem-se às nádegas, e
que coram quando alguém fala “broche” (o termo sujo para sexo oral).
Mas quem decide o que é palavrão e o que não é? “Isso depende dos mecanismos
de conservação da língua, que são o ensino, os meios de comunicação e os
dicionários. As palavras relacionadas a sexo que não são palavrões são quase
todas da literatura científica, como pênis e ânus”, explica a lingüista Wânia
de Aragão, da Universidade de Brasília. Não que isso impeça termos científicos
de hoje, como “pedófilo”, de virar palavra suja um dia. A palavra
“esquizofrênico”, por exemplo, nasceu na ciência, mas agora, com o aumento dos
dignósticos de doenças mentais, caiu na boca do povo. E está virando
xingamento.
Mas saber quais serão os palavrões do futuro é tão impossível quanto prever
o futuro da tecnologia, da humanidade ou do Corinthians. O escritor e
comediante inglês Douglas Adams, resumiu isso bem no clássico O Guia do
Mochileiro das Galáxias. O livro diz que o palavrão mais sujo entre os
habitantes dos outros planetas da Via Láctea é uma expressão bem conhecida dos
terráqueos: “bélgica”.
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