O pavor da solidão é algo presente em
muitos de nós por razões que nem sempre são muito consistentes. Em
primeiro lugar, ela costuma estar associada à dor que sentimos nos
primeiros tempos depois de uma separação amorosa. É claro que nos
habituamos ao aconchego que deriva de uma união, mesmo que problemática.
A dor derivada da ruptura não
corresponde à solidão e sim a uma tristeza que deriva da transição de
uma condição para a outra. A solidão corresponde ao estágio posterior,
ou seja, ao modo como vivemos depois de ultrapassar essa turbulência, por vezes bem dolorosa, típica de uma transição que, num primeiro momento, nos parece ser para pior.
O outro motivo para que as pessoas
sintam arrepios só de pensar na ideia de ficar só deriva do que isso
significava até há algumas décadas, quando estar só era indício de
incompetência, de não ter despertado o interesse de ninguém com o
objetivo de estabelecer um elo conjugal. As mulheres eram chamadas de
“solteironas” e os homens eram objeto de dúvidas acerca de sua
virilidade. Esses, entre outros, eram estigmas próprios dos que ficavam
sozinhos. É fato que eram poucos os que optavam voluntariamente por esse
estado; e eles mesmos achavam que o fato de não ter um parceiro era
indício de alguma incompetência.
De umas poucas décadas para cá, tudo
mudou. O número de pessoas que se casa e se divorcia é muito grande e
em muitas das grandes cidades do mundo, o número de pessoas que vivem
sozinhas chega a 50% da população. Em São Paulo esse número é de mais de
15% e todos sabem que o tipo de habitação que mais se constrói e vende
hoje são imóveis pequenos e centrais, próprios para quem quer viver só.
Hoje não existem estigmas que marcam os
que estão sós, apesar da maior parte das mulheres ainda prefere
ser divorciada do que solteira (ao menos houve alguém que as quis como
esposa!). As pessoas frequentam as festas desacompanhadas sem
constrangimento, viajam em companhia de amigos ou sozinhas sem
ressentimentos, vão ao cinema e se entretêm com facilidade em casa com
os múltiplos equipamentos eletrônicos que fomos capazes de inventar.
Os homens, antigamente muito pouco
competentes para viverem sozinhos, hoje sabem se virar muito bem na
cozinha – é fato que o microondas mudou totalmente a qualidade de vida
de muita gente – e não se sentem mal por ir ao supermercado ou cuidar da
própria roupa. As mudanças são dramáticas e aconteceram ao longo de
muito poucas décadas, de modo que não espanta que muita gente ainda não
consiga ver a condição de solidão como algo alegre e eventualmente muito
mais gratificante do que o convívio, um tanto forçado, com criaturas
com as quais não temos muita afinidade.
A grande questão é: dada a
extraordinária melhora da qualidade de vida das pessoas solteiras,
livres inclusive para terem prazeres eróticos sem as limitações próprias
dos elos sentimentais, o casamento tenderá a desaparecer? Poderá essa
instituição milenar competir em termos de geração de felicidade com a
adorável vida que levam os solteiros?
Penso que o casamento, na versão que tem
ocorrido ao longo dos últimos 100 anos, está com os dias contados. Acho
que a ideia de complementos, de que um terá que ser a tampa e o outro a
panela, de que um terá que ter as propriedades que faltam ao outro, é
algo que não resiste ao crescente prazer que a vida individual vem nos
proporcionando. Ou seja, a quantidade de concessões que as pessoas estão
dispostas a fazer está diminuindo não só por força de um amadurecimento
emocional maior como principalmente porque elas se deleitam cada vez
mais facilmente com a vida sozinhas. Quem vive bem sozinho não se dispõe
a fazer grandes concessões para viver a dois.
Vivemos uma transição, substanciada
pelos ditos populares: deixamos de lado a metáfora da “tampa e a panela”
e agora falamos em “almas gêmeas”. Isso pressupõe maiores afinidades,
semelhanças de caráter, gostos e interesses. Afinidades maiores tornam o
convívio mais fácil, com menos concessões e de certa forma, determinam
um estilo de vida quase igual ao que se obtém vivendo sozinho. Ou seja,
o convívio entre pessoas afins determina a possibilidade de uma
síntese, de uma aproximação entre a qualidade de vida dos casais e dos
que vivem sozinhos.
Assim, acho que chegaremos a um mundo
novo, onde os casamentos existirão sim, mas serão muito mais respeitosos
da individualidade das pessoas. É como se a qualidade de vida das
pessoas solteiras se transformasse em nota de corte: os casamentos que
forem de qualidade inferior à vida dos solitários tenderá a desaparecer;
sobreviverão os que produzirem uma qualidade de vida melhor ainda!
Fonte: FLÁVIO GIKOVATE
Obs: - Acho que o corte que Gikovate faz entre o passado e o presente é muito estreito e excludente. Ainda existem muitos elementos desse passado ao qual ele se refere no presente. No mais, é isso aí.
Obs: - Acho que o corte que Gikovate faz entre o passado e o presente é muito estreito e excludente. Ainda existem muitos elementos desse passado ao qual ele se refere no presente. No mais, é isso aí.
Excelente colocação entre solidão e tristeza !
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